quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

O Senhor A.


Fazia parte das nossas imagens de meninos.
Acompanhou-nos os sonhos polvilhados de estórias coloridas e rebuçados de tostão embrulhados em papel de cor e sabor a maresia.
Para nós, apareciam sempre primeiro os braços, da imagem frágil e dançante,que por entre as nuvens baixas parecia não ter pernas.
Voava pois por cima do areal ,o velho senhor A.
Voava baixinho e, cantava em roda, com todos os meninos que queriam cantar. Depois, sentava-se quase dentro do poucochinho de sol. Dos bolsos tirava estorias, em livrinhos pequeninos, desbotados pelo sabor dos rebuçados.
-   Estes são para os meninos lerem com os pais ao serão.
E se eram grandes esses serões na praia...quase sempre passados dentro de portas por causa da cacimba insistente, numa húmidade miudinha que nos colava os cabelos, as roupas, e fazia com que as casas tivessem todas o mesmo cheiro, de mar e de mofo. Nessas noites, que se prolongavam tantas vezes em tardes e manhãs de mau tempo, os livrinhos do sr.A. passavam de mão em mão. Eram lidos por todos e rivalizavam com os contos fantásticos de lobisomens, contadas entre dentes pelas criadas das casas. Esses homens horríveis, descidos do monte nos dias em que a sirene do farol não nos largava os sonhos...
Um dia, sem avisar, o Sr. A. deixou de vir.
Foi num verão igual aos outros.
Esperámos por ele sentados na praia, em roda...perguntámos à Iracema dos bolos que por certo conhecia toda a gente. Procuramos no cais, nas dunas e por detrás de todas as barracas e depois, a pouco e pouco fomos partindo, ao sabor do ritmo vagaroso dos finais de verão.. .As malas montadas na mula do Ti Joaquim, que o carro, era só para acomodar as famílias numerosas desses tempos.
Os baús, esses, vindos da cidade, seguiam agora a viagem inversa rumo à gare,  como de costume, até a avó um dia se lembrar de os mandar buscar. Senão, passavam o inverno num lugar sem norte e regressavam pelo seu pé à praia.
Passaram-se anos, e sempre que se viam braços longos por cima do nevoeiro, uma geração inteira de gente crescida, sem querer, olhava por cima à espera de ver sair de uns bolsos, as maravilhas desse homem com o tamanho dos sonhos dos meninos e, a certeza de ter tido sempre consigo esta praia em concha, na palma das mãos.
Hoje, contamos aos filhos as estórias do sr. A.
E às vezes, se  nos encontramos ainda por estas paragens, de nevoeiro e cacimba verdadeira, quase sem querer,  passamos o pé por debaixo da areia húmida, não vá ter ficado esquecido algum conto com capa cor de laranja...

George Sand

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