quarta-feira, 25 de abril de 2012

Carta à minha memória IV - Proíbo-te que me escrevas




Proíbo-te que me escrevas
Passei um tempo sem notícias.  Foi muito bom.
Um esquecimento de palavras, em  que quase me retemperei: de ti e de mim.
Sempre foi complicada esta nossa dança de sentidos. O Passado feito presente, empacotado em  escritos.
Cartas em que me tentas  fazer esvoaçar acontecimentos, até à frente aberta dos meus passos, de futuro.
Não minha cara, não te deixarei nunca dançar o tango. Que me impõe o regresso, objectivo, ao ponto de partida.
Mas ontem surpreendeste-me. A tua ousadia foi ao ponto de me enviares quase todas as vírgulas da minha infância.
Recebias. Ainda pensei que estivessem adormecidas, mas não. Tinha-las espicaçado,  com os poucos pontos de interrogação e menos ainda, de exclamação,  que encontraste.
Como se na infância houvesse alguma certeza. Ou as perguntas fossem definitivas.
Chegariam, pelo menos atordoadas, embaladas no tempo, as virgulas,  não fosse a tua maldade.
Teria preferido virgulas de infância,  aconchegadas, sob o selo, de ti. Mesmo que sem lacre, que não te sei de desvelos.  Mas nem disso foste capaz.
Abri o envelope e soltou-se de imediato, o choro, do dia em que me perdi.
Um choro agreste, aflito, desfeito de sentido. Tal e qual como aos cinco anos.
Quase não consegui resgatar do fundo, a  minha timidez. Sei exactamente como acontecia, mas não a consegui resgatar.
 O riso, esse,  escorregou-me por entre os dedos das mãos que cresceram, tu sabias, e não mais o encontrei.
Até as noite, com muita tosse, passadas  a ver a panela no fundo do quarto, que bruxeleava desenhos,  te encarregas-te de mandar...
Proíbo-te que me escrevas.
Não quero notícias tuas. Nada de ocasiões mal embrulhadas, que insiste em enviar.
Talvez mude de direcção ou talvez opte, por nunca, mas nunca mais mais te ler...

Este texto foi escrito, originalmente para o blogue Cartas aos molhos

sábado, 21 de abril de 2012

Dança de azul em plié de sol

Este é um texto especial. A prova de que os meios da conversa, banal, numa rede social, num momento de descontracção, também podem trazer, alguma beleza.
Propositadamente, publico este texto, feito a duas mãos, com a Joana Santa Marta Granger,do blogue A simplicidade de existir  sem "retoques", na exacta espontaneidade com que foi feito. Em termos, de comentário, imediato, no facebook

A imagem e frase propostas foram estas


torradinhas de horizonte embebidas em azul. São servidos?



Nada é mais inspirador que sentar em cima de uns trocos de árvore trazidos pelas marés, com histórias de mil viagens cravados nos seus rasgos, olhando o silêncio comovente do bater da ondulação do mar, azul, nas areias desprovidas de pegadas...

Ao que sei ele sentou-se na sombra, de azul e mais azul. Sem nunca largar o azul.
Pincelaria com ela, uma única dança, de curvas de marés, a redesenhar, então, a paisagem.
Longe ficaria a vontade de partir...

Tão parca lhe parecia agora a cor azul, quando espelhada nas cores da nostalgia de quem se deixa preencher, pela melodia da saudade, mesmo antes de a sentir. A brisa que contornava as rochas que o mar teimava em definhar, clamando a si, o calor das suas areias douradas, parecia-lhe sussurrar de volta as palavras que tantas vezes aqui partilhou, com estes mesmos paus, onde agora se sentava.
Percorreu com os dedos a marcas de um mar também para eles,  impiedoso. Mas eles aqui continuavam, fortes, sustentando o peso do seu corpo, parado, tão distante da leveza da sua alma revoltada...

Ela dançava. Alheia, já, a todas as pinceladas.
Tinha-se embriagado de mar.
os braços espaçados na ventania e o olhar mergulhado numa qualquer paleta.
Um abraço sereno do sol, seria, agora, o bastante para a fazer rodar.
Levá-la-ia longe a dança...
Para muito longe desse lugar.
E ele, pregado, à sua fúria de azul...

Era apenas o espectador de uma dança cujos passos nunca quis aprender. Olhou a névoa que se erguia sobre as areias, e desejou ver as suas pegadas, ali, sombra dos pés dela. Dançando as mesmas notas, copiando as palavras repletas de razão e sentido, onde o adeus jamais teria lugar...

Pegou no pincel e ficou, eternamente, a desenhar pássaros. Todos da mesma cor.
Pássaros presos num papel desbotado, de sempre azul e, sem nenhuma margem para voar.
Só o vento lhe traria novas, de uma dança longínqua, em pontas...

Tentou imaginar a linha do horizonte carregando nos tons de um só azul, mas este esbatia-se e fundia-se de novo. Queria marcar aquele troço que separa o sonho da realidade, queria agarrar as mãos dela, e na valsa da intempérie, empurrado pelo vento, deslizar para fora do seu mundo, que agora percebia ser tão pequenino, tão insignificante. Apenas mais um grão de areia como os que escorriam por entre os dedos...

De uma dança de azul, em pliê de sol...

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Mar em amor de pele




Começou por segurar devagarinho um resto de espuma entre o polegar e o indicador.
Água de um oceano inteiro, para cobrir de afagos...
Os dedos esticados sobre todo esse movimento, embrulhavam  agora, cuidadosamente , cada onda, na palma da mão.
Não seria preciso muito, para cobrir  de pele um oceano.
Só o tempo necessário da ternura, a embeber toda as lágrimas,  mal contidas desse mar.

Nascera assim, desvalido de água. Sem outro contacto que o da areia rude, das falésias agrestes, a arranharem-lhe as vagas.
Por isso se incendiava tantas e tantas vezes, num desespero de vento. Dias inteiros de destemperos, e raivas, galopando em tempestades ruidosas, a assustar quem se atrevesse a chegar-lhe à orla das emoções.

Jazia agora quieto e manso. Num marulhar  leve, oscilando entre os dedos de uma só mão.
A linha do horizonte parada, serena, de olhos postos, no sol
A boca entreaberta, a pedir beijos, salgados.
E uma gargalhada, de um mar, em amor de pele.

terça-feira, 10 de abril de 2012

Rostos etiquetados







Acordara pasmado!
O rosto ansioso de ontem,  enrolado na camisa, já levemente desbotado, olhava-o ainda, da "senhorinha", aos pés da cama.
Seria assim, hoje, entre espantos e exclamações, que encararia o mundo.
Nunca escolhia os rostos. Limitavam-se a aparecer-lhe,  largados, sem presas, pelo luar, que nasce quase sempre semi oculto.
Eram rostos de angústia, de medo, de assombrosa felicidade. Ou tão só retratos, debruçados, da própria vida.
Nada fazia prever face alguma. Nem sequer os olhares embaciados  pelo sono, do dia que passara.
Vestia-se de rostos como quem se veste de si.
Despia-se de rostos como quem se despe de alguém.
Fora sempre assim. E, de segunda a sexta feira.
 Rostos de medo e de ausência - que demoravam mais tempo a desnudar, é certo- intercalados com  faces absurdamente efusivas, a darem lugar, num outro dia qualquer,  a um semblante carregado.
Desde que o tempo, se moldara, perfeito, à sua existência...

Raramente arrumava  os rostos durante a semana. Não havia porquê, demorar-se em  faces usadas, que exigiam catalogação exaustiva e eficiente.
Melhor a espera, de noites inteiras, sem nenhuma expressão.

Ao sábado, levantava-se numa total ausência de personalidade. Nem um breve olhar, a denunciar a alma.
Seguia directo para o escritório-mais-que-mudo, no fundo do corredor. Portas meias com um pequeno quarto de costura, onde  ainda tentara, em vão, alinhavar silêncios no canto dos olhos. E,  pespontar sorrisos, sempre que os não havia.
Pegava primeiro na segunda feira e reconstruía então, criteriosamente,  toda a sua  paisagem.
No fim do dia, um arquivo de sombras, preencher-lhe-ia o tão almejado final da semana em  ausência. Com todos os  rostos, devidamente, etiquetados.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Gramática de um amor indiferente

Lembro-me muito vagamente, que começava sempre com orações intercaladas, absolutas.
Invariavelmente, na terceira pessoa do plural.
Não sei se eram elementos complementares do significado, se implicativos, mesmo, do coração.
Havia predicados, às dezenas, que se passeavam de mãos dadas a adjectivos coloridos e vibrantes.. Qual deles o mais bonito.
Com o tempo, foi ficando, sobretudo o verbo. Poderoso e directo.  Um bocadinho alheio a atributos e opostos, a determinativos...mas ainda assim o verbo, sempre em passada larga de concordância, com ambos, os sujeitos.
Era assim que fazia sentido: num discurso directo e claro. Sem outra categoria que a da emoção.
Em uníssono, o substantivo próprio. Com  número afectivo e,  particularidade absoluta, de ternura.
 Todos os hífens que nos encantam a memória eram tónicos. E,  faziam-nos deslizar os dias,  intercalados de coisas-e-sentimentos-parecidos-com-o-mar-feito-de-pele.

Não sei onde entraram os artigos...sobretudo os indefinidos...não me lembro sequer do dia...se foi por acaso, se pela mão de um superlativo maior.
O que sei é que acordei sem pronome. 
Percebi  então, que tudo, era afinal, relativo.
Justifiquei sem vírgulas. E numa ausência total de pontuação, troquei o condicional, pela primeira pessoa do singular.


A fotografia  é  de uma obra, do escultor em Lego, Nathan Sawaya


domingo, 1 de abril de 2012

Semi asas, a setenta e dois centímetros do chão








Vagueio pela página em branco, como por uma esquina desenhada de Lisboa.
Vagueio com as semi-asas que me fazem vaguear.
Nasci com semi-asas.
Permitem-me balouçar, expectante, a setenta e dois centímetros do chão.
 Rigorosamente, na altura, do coração de  quem passa . E,  ainda,  sem alcançar totalmente, a imaginação, de quem chega.

Setenta e dois centímetros, fazem-me contornar obstáculos. Obrigatoriamente. 
Ainda há rastos de carros, bocados de casas, de vidas, de quase tudo,  a setenta e dois centímetros do chão. E, coisas despercebidas também. Que nunca pousam definitivamente em lugar algum...
Há  muitos detritos de gente. Muitos sorrisos adivinhados. Algumas lágrimas mais que perdidas. Paisagens que se percebem em destemperos de  todas,  mesmo todas,  as vidas...

Há também muito incumprimento de gente, que se modela, depois, acima dos setenta e dois...ou até, não.
Há quase tudo. Menos pombos, que insistem em passear as asas encolhidas, pelas beiras dos passeios. E só  as abrem,  quando plenamente,  precisam de sonhar.
Com as minhas vou a setenta e dois centímetros de espaço. Um azar perdido...numa sorte desmembrada. Ou somente uma presença,  num lugar de quase tudo...o  intervalo de praticamente nada.

Alguma gente se lembraria de descrever a vida, no limite dos setenta e dois centímetros , a partir do chão.  Limite que me  encolhe os  ritmos, por baixo do horizonte...

Não faço ideia porque me deram estas semi-asas, que  me permitem a distância e a proximidade. Num voo tão breve, para lugar algum...



(este texto pode ser lido tanto em prosa poética como em poesia)
(A fotografia é do fotógrafo Mário Castello)