segunda-feira, 22 de junho de 2020

Caminho numa recta absoluta



Devagarinho, acomodou-se no nicho. As pernas de encontro ao queixo, no único lugar que lhe permitiria permanecer, até que a luz o invadisse de novo.
Toda a noite as badaladas ecoaram um sibilante: tzim tzum, tzim tzum, tzim tzum sem que uma única fresta lhe traçasse  um caminho.
Seria qualquer um,  esse caminho, menos a o da escuridão… Tizm tzum, tzim tzum, tzimtzum
Adormeceu algures, entre a terra, o seu coração e a eternidade, embalado pela branda presença do som que lhe lembrava um outro amanhecer .
Quando acordou reparou que a única porta fechada lhe estendia uma recta absoluta. Com os olhos semiabertos, decidiu-se então começar a caminhar.

Imagem: " Mandola" Georges Braque 1910

quarta-feira, 17 de junho de 2020

No raiar da Primavera



Acordámos assim,  os braços submersos debaixo de um suspiro longo e cremoso.
A noite deslizada que fora, em calda de açúcar, cobrira-nos as almas outrora vestidas de verde. Todas as almas, outrora vestidas de verde. E as outras, já matizadas pelos primeiros rigores do Outono num tom amarelado, pálido e indiferente. Não havia agora,  nenhuma sombra de dúvida neste abraço.  Os sonhos, amortalhados,  lado a lado, até ao raiar da Primavera…


Imagem: "Amor" também conhecido por " O vampiro" de Edvard Munch 1902

segunda-feira, 8 de junho de 2020

Passos



Digo-te passos
Enquanto palavras rolam no chão.
Digo-te movimentos
Sopros do impossível.
Passo.
Tu passas.
Nos nós silenciosos
E escuros  dos olhos,
Há os teus medos inoportunos
A galgarem as manhãs.



In "II Antologia de Poesia  Contemporânea" Coordenação de Luís Filipe Soares Lisboa 1985

Imagem: "Viajante sobre o mar de névoa" de Caspar David Friedrich 1817