sábado, 29 de fevereiro de 2020

Absoluto e só




Ao nascer do sol restará a labareda,
Que me envolve a mim.
Terra, sangue e nastro.
O lastro que me sabe a pó.
Ar de dentro tão puro e tão breve,
Suspiro de um início de vida,
Absoluto e  só.

Imagem: "The Promenade" Marc Chagall 1918

Filipa Vera Jardim

sábado, 22 de fevereiro de 2020

Até à penumbra



Espero que amanhã te saibas e te encontres ao fundo da rua. Os passos  que vestires irão acompanhar-te até à  penumbra do dia. Uma volta concêntrica, apertada  e começaras a pensar se é possível repetir tudo amanhã.
Os mesmos rostos, os mesmos anseios, a gargalhada embebida de sol a que te agarras com força. 
O tempo escorre -te devagar, no ritmo manso da urgência que te completa.
Como se o vagar embalasse tudo. Como se por causa do vagar a vida  fosse, ela mesma,   mais controlável.
Aprendes-te há muito, no fundo da  rua  em que te sabes  e te encontras,  que a vida não tem nada de controlável. O vagar é apenas um jogo de sombras, um episódio e um remanso.
Amanhã os passos que vestires serão absoluto e lugar, até à penumbra.

Filipa Vera Jardim

Imagem:  " A Estrada da Comenda I " de Manuel Amado (1993)


segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Havia que retomar o tempo



Havia que retomar o tempo. As voltas concêntricas da vida, o desalinho do entardecer na paisagem côncava do meu lugar.
Havia que retomar o tempo, devagar.
 A promessa branda da simetria das horas que demoravam a enrolar-se na quietude.
O desafio ondulante de mais uma maré que irrompia de um espaço oportuno, a subir, a subir. E os tornozelos destapados na areia breve a cingirem-se às algas que chegavam às mãos cheias.
Havia que retomar o tempo todo, os sonhos todos, as interjeições e o luar.
O tempo numa cadência presente de absoluto. Matéria e energia, comportamento e causa, em cadência absoluta, desmesurada,  pendular.


Imagem:  Composição VIII de W. Kandinsky

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

Flor



Flor foi a sílaba que escolheste para me oferecer na primeira noite que passei encostada ao teu umbral.
É uma sílaba plena, disseste-me. Sozinha transporta com ela o cheiro intenso de um cravo, a beleza de uma gardénia que se embebeda de sol. Uma única sílaba e contém em si toda a simetria do universo, nunca a percas, pode ser o início de um grande e belo poema.
Peguei na sílaba flor e metia-a no bolso.
Reparei qu8e me olhava estupefacto.
-No bolso? Meteste a sílaba flor no bolso?
Envergonhado, retirei-a já um pouco amachucada.  Pegaste nela e com todo o cuidado começaste a alisar -lhe a parte de cima do F, a ajustar o L, a contornar com força o O, a endireitar o R...
- Se não cuidas dela, ela vai-se. E depois, como consegues tu dizer que algum pássaro algum dia lhe pousou? Como podes tu dizer que alguma amontanha se vestiu dela? Que alguém a colheu ao passar...É impossível imaginar uma série infinita de poemas sem uma flor.
Sem uma única sílaba e o universo poderia ficar irremediavelmente coxo.

Imagem: "Mulher-flor " de  Pablo Picasso

domingo, 2 de fevereiro de 2020

A casa Amarela



A casa era amarela.
Amarela de sol e de luz, que lhe entrava de rompante e se acomodava por todo o dia. Por instantes, a casa embalava-nos as fantasias, balançava-nos a imaginação. Deixava-nos escorregar os sonhos por entre os corredores e a sombra frondosa das palmeiras do jardim.
A casa amarela era uma casa grande e cheia. Ocupava lugar de destaque Todos os recantos estavam repletos. Da cozinha, à sala. Das traseiras, à memória


in " São Martinho do Porto"
       Momentos

Imagem: La fenêtre chez Bataille Vincente Van Gogh 1887