segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Os dias da Peste - O dia em que a minha janela se emocionou

 


Antes de ontem o tempo era diferente. Sabia a terra, a sal da terra e tinha gente. Antes de ontem, as horas passavam céleres pela curva perfeita do relógio,  sem olharem para trás. os cabelos das horas voavam a cada minuto, os sorrisos das horas sucediam-se a uma cadência ritmada...Antes de ontem. 
Ontem suspendeu-se tudo. Um repente de suspensão dos passos, das necessidades, da urgência de ir ede voltar, do pensamento, até. (...)

Começa assim o meu pequeno contributo para uma obra maior: Os dias da Peste, que assinalam o centenário do PEN CLUBE PORTUGUÊS. Com organização de Teresa Martins Marques e Rosa Maria Fina. 
Uma obra que ficará certamente para a História deste tempo estranho que vivemos. 

quinta-feira, 8 de julho de 2021

Literatura e cultura em tempos de pandemia - O bicho

 


" Chegou de repente o Bicho e invadiu tudo. 
Um bicho redondo, sem arestas definidas nem olhos para ver. Sem orelhas para ouvir nem pernas para correr, sem asas, sem braços, sem quase existência. 
(...) O bicho que chegou e invadiu tudo com a vontade firme de permanecer

Foi com muito gosto que participei com este conto no repto lançado pela UCCLA. Em tempos de pandemia. 

segunda-feira, 29 de março de 2021

Album de fotografias

 



A única ordem possível nas páginas era a de chegada à vida.
Um a um, cada qual na sua vez, tomávamos o lugar que nos calhava no enorme álbum de fotografias da sala de jantar.
Era à mesa que desfolhávamos as páginas, acrescentávamos os que acabavam de chegar e com pena, passávamos as mãos carinhosamente pelos que tinham acabado de partir. O álbum era pois uma espécie de repositório de uma parte das nossas almas, precisamente aquela parte que só existe, depois de devidamente assinalada, devidamente partilhada e com assento no lugar da memória. 
Por cada um que chegava e por cada um que partia, o álbum abria-se para deixar instalar mais um pedaço de tempo, um lugar, um sorriso.
Ninguém sabia quem o tinha começado. Uma menina de caracóis sem nome, sorria-nos do alto da primeira página, com o olhar escorregado já na sépia amarelecida. Sorria-nos de longe, desse lugar do tempo que só nos pertence porque  existem recordações.

Na imagem: "Auto retrato em grupo" de José de Almada Negreiros 

segunda-feira, 8 de março de 2021

Para além de nós

 




Dobrei muito bem o lençol por alturas do queixo. De fora, apenas a minha razão e as tuas dúvidas. Abraçámos -nos como se a noite fosse eterna. Como se o aconchego que nos invadiu fosse capaz de nos fazer esquecer os demónios. Todos eles. Os que chegam de madrugada e sobem pela nespereira do jardim e os outros, os que vivem sempre dentro de nós.

O lençol, por alturas do queixo, lembra agora um mar enrolado ao corpo. Um mar alto de transpiração e sono. Um mar de alento, à espera de uma manhã que nem sequer sabemos se virá.
 Não fossem as minhas pernas sargaços e os teus olhos faróis de um qualquer navio e dizia te que podíamos partir. Agora, sem destino nenhum e com uma direcção: para além de nós.
Muito para além de nós…  


Imagem: "Night and Sleep" de Evelyn de Morgan 1878

sábado, 6 de fevereiro de 2021

Voo

 




Diz-me porquê, diz-me. O tempo não conta,  agora. O espaço esconso deste único lugar aconchega-me a noite, o destempero e a ânsia de partir. Uma imensa ânsia de partir.
Estar aqui significa uma espera insuportável da vida que já não alcanço.
Abro os braços e agarro-me com força à imagem do infinito. Para lá, para lá. Quero ir para lá. Muito para lá, até ao lugar de fora deste espaço onde  o mundo  se refaz em permanência  e por inteiro.
As minhas asas são esteiras paradas, lençóis de linho que alguém fiou sem nenhuma pressa.
Descubro que ainda estás aqui e me seguras agora a leveza dos ombros, me impulsionas a leveza dos ombros.
Larga-me! Deixa-me ir…





Imagem: La Clairvoyance de Rene Magritte

domingo, 10 de janeiro de 2021

Sonhos

 



Acordámos assim, os braços submersos, debaixo de um suspiro longo e cremoso. A noite, deslizada que fora em calda de açúcar, cobrira-nos as almas outrora vestidas de verde. Todas as almas outrora vestidas de verde. E as outras, já matizadas pelos primeiros rigores do Outono, num tom amarelado, pálido e indiferente.
Não havia agora, nenhuma sombra de dúvida que restaríamos neste abraço. Os sonhos amortalhados, lado a lado, até ao raiar da Primavera.
Gotas de chuva grossa invadiam os espaços e afogavam qualquer pensamento que tentasse emergir.
Por dentro, os braços submersos evitavam a todo o custo o ar que sempre se esgueira de um suspiro.
Os olhos ainda semicerrados permitiam apenas negas de luz.
Dos sonhos não restava quase nada a não ser o vazio silencioso.
Acordámos assim e,  assim  iremos  permanecer. 


Imagem: "Chopin de George Sand" de Eugène Delacroix