segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Amanhã, será para sempre




Espera. Não me entres de supetão. Não me entres…
A porta, tu sabes, está sempre semicerrada, não vá teres que vir, devagarinho, a fazeres de conta que não é nada… Só um instante, uma hora, um espaço pequenino por entre os ponteiros do teu relógio…
O tempo, tu és o tempo eu sei. És todo o tempo, por inteiro. Trazes contigo uma máquina infernal que me tritura os passos, me absorve a lonjura, me desagrega.
Quero urgência por vezes, eu sei disso, mas apenas de porta fechada.
Não te deixo passar. Não forces… Não implores. Eu não te deixo passar
Aqui não tens lugar.
Livra-te de me atravessares a existência nem em passinhos miudinhos.
Detrás do sofá da sala há um relógio de cuco sem asas, sem voz, sem mecanismo.
Tudo para que não te chegues a mim.
Quero acreditar que amanhã, amanhã, será para sempre…




sexta-feira, 12 de outubro de 2018

II Bienal de artes plásticas e literatura CPLP/ Galiza

Foi com muito gosto que aceitei o convite para estar presente amanhã, dia 13 de Outubro na II Bienal de artes plásticas e Literatura CPLP/ Galiza.

A todos quantos me honram com a sua passagem por este espaço, convido desde já a estarem presentes.
Iremos debater a literatura, a sua diversidade e as possibilidades múltiplas de partilha no espaço lusófono. Dar palavra aos poetas, chamar ao palco o acto criativo, no espaço privilegiado do Mosteiro da Batalha.

segunda-feira, 18 de junho de 2018

Colisão




Acordei a pensar que o mundo era finito, hoje. Tudo acabaria, num passe de mágica , ao nascer, ou ao romper da aurora.
Restaria depois disso, o lugar vazio e mais nenhum tempo.
E espaço outrora ocupado por coisas inertes e mais nenhum sonho.
Estiquei -me para fora da janela a ver passar quem ainda passava e, a pensar que daqui a nada ou daqui a tanto,  é indiferente, seria só o fumo dos corpos  e o espaço dos passos a desabitar este lugar.
Como se a vida se tivesse desnorteado de repente e não soubesse muito bem para onde ir.
Estiquei-me mais para fora da janela, os braços nus pendurados no abismo e os olhos  a dançar ao compasso do vento.
 Daqui a nada ou, daqui a tanto, não seria preciso esticar-me para fora da janela.  Haveria nessa altura  um enorme fora, efectivamente. No entanto, nenhum dentro.
Um a um, contei os transeuntes que restavam na rua a passearem como formigas num carreiro e gritei-lhes e lancei-lhes uma corda…


Fotografia : LHC - the large Hadron Collider

sexta-feira, 1 de junho de 2018

Umbral


Encostei-me ao teu umbral. Mesmo sem saber se a tua existência era agora ampla ou, se a porta da tua vida permanecia como sempre, aberta.
Lembrei-me só, de que havia uma largueza quando se chegava. Uma largueza de escadas, de hall de entrada a cheirar a fruta da época.  Uma largueza da cor da fruta da época, tombada em matizes de maturação nesse teu lugar.
Nunca me imaginei assim, acredita, encostada ao teu umbral.
Ergui os olhos e percebi,  que não havia  chuva nem sangue, nem a cor pálida do teu silêncio. Só um naufrágio amendoado de corpos que ficam, que se deixam ficar e  que não permite tudo.
O travesseiro atravessava-me o pescoço e prendia-me a respiração. Do lado de lá, vi que permanecias.  Permanecias no teu lugar exíguo, com vista inteira para o saguão... (...)

sábado, 12 de maio de 2018

Transparece-me

 

Transparece-me
De urgência e de luar
Do tamanho do meu e do teu infinito,
Na minha imagem tão crua.
Transparece-me de amargura,
De nome,
De um véu que me despe inteira,
A rasar esta planura.
Se um dia eu alvorecer transparece-me da noite,
Vil e escura.
Se um dia eu alvorecer...

A minha transparência será tua.


Imagem: Escultura de Jack Storms

quarta-feira, 28 de março de 2018

Festival Internacional de Poesia "Grito de Mulher"


É com muito gosto que participarei mais uma vez no Festival Internacional de Poesia "Grito de Mulher"
Sintam-se convidados. Terei muito gosto que apareçam e promete ser  uma boa jornada de poesia.

segunda-feira, 19 de março de 2018

Transparente






Primeiro foram os contornos do rosto a esbaterem-se logo seguidos do inconsciente.
Ainda havia pernas, braços e uma vaga ideia de pestanas e, já nada se vislumbrava do inconsciente…Só uma névoa a lembrar um episódio remoto ou uma ideia que outrora tinha sido fixa.
O medo, a morte, a vida, a criatividade e a urgência teriam que brotar agora dos dedos dos pés, do lugar recôndito das virilhas entrelaçadas aos tendões, das dobras dos cotovelos que se faziam espuma tão mas tão,  depressa…
Fosse como fosse, dentro de muito pouco tempo nada restaria. Pelo menos, nada que se visse.



Fotografia: Mornaria

segunda-feira, 12 de março de 2018

Abraço de olhar




Abracei-te o olhar num dia em que não havia vento nem sombras nem nenhuma tarde, por mais pequena que fosse, estendida ao sol. Só o tempo, num galope desenfreado por entre os pingos grosso da chuva que se escorria devagar. Tão devagar.
Primeiro segurei-te o canto  olhos com as minhas pestanas, suavemente. E com vontade. Muita vontade. Depois, fiz deslizar uma a uma as minhas lágrimas, plenas que se refundiram na tua água.
Era de um azul macio a tua água. Era cinza o meu olhar.
A noite que chegou entretanto, embalou-se de um verde-quase-tudo por entre as luzes baças e mudas.
Dançamos,  até ao nascer de mim.

sábado, 24 de fevereiro de 2018

Homem de sabão





Experimentou...Apesar de todos lhe dizerem que era feito de sabão, descer à rua num dia de chuva. Não derreteu  mais do que o necessário para  fazer escorregar o silêncio no alcatrão. Foi só isso que aconteceu: escorregou o silêncio no alcatrão.
Mas ao contrário do que se poderia prever, não se desfez.

Mal chegou a casa, despiu a gabardina, descalçou os sapatos e, sem saber porquê, começou  a chorar.
As lágrimas correram céleres foram deixando um rasto de bolas de sabão que a pouco e pouco lhe foram desfazendo as ideias...
Uma a uma, as ideias rolaram desfeitas, pelo chão.


quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Sete Chaves , no lugar do teu coração


Era difícil entrar em casa com a memória assim, escancarada de fresco.
Rodar sete vezes as chaves que trazia ao peito, desde que nascera, parecia-lhe tarefa improvável.
Sete vezes, dissera-lhe a mãe antes de morrer. Sete vezes, cada uma das sete chaves, para o lado de onde te soara o teu coração.
e as escadas a galgarem-lhe o pensamento.
E as portas que rangiam de encontro aos sopros que vinham do quintal.
O coração a sobrepor-se , numa linha imaginária que se estendia pela sombra dos ombros e até ao patamar maior da sua existência.
Nunca lhe parecera que esse dia pudesse acontecer... ^
A Infância, aberta de par em par, escorregava-lhe agora pelo canto dos olhos, em catadupa
Tivera ela, tempo de rodar uma a uma todas as maçanetas?


In " A Magia das chaves" Edições Vieira da Silva

na imagem: as chaves do Santo epulcro de Jerusalém.

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Sombras



"- Quero uma navalha. suficientemente afiada e totalmente discreta para matar e estripar sombras.
Ninguém  se espantou com o pedido. O tempo era de desassombros do passado e de receios mais que fundados no futuro.Delicadamente, confiaram-lhe a melhor peça da loja: Uma navalha, infinita no alcance e praticamente invisível no meneio. Não era de gente que se tornaria matador. Mas somente das sombras das gentes. dessas que carregam as memórias quando se colam aos passos. Dessas, que sugerem futuros, sempre que o sol as projecta para a frente. Sombras do tempo de recordar. E, também do tempo de poder vir a sonhar."

In "Contos Capitais", Edições Parsifal