segunda-feira, 29 de março de 2021

Album de fotografias

 



A única ordem possível nas páginas era a de chegada à vida.
Um a um, cada qual na sua vez, tomávamos o lugar que nos calhava no enorme álbum de fotografias da sala de jantar.
Era à mesa que desfolhávamos as páginas, acrescentávamos os que acabavam de chegar e com pena, passávamos as mãos carinhosamente pelos que tinham acabado de partir. O álbum era pois uma espécie de repositório de uma parte das nossas almas, precisamente aquela parte que só existe, depois de devidamente assinalada, devidamente partilhada e com assento no lugar da memória. 
Por cada um que chegava e por cada um que partia, o álbum abria-se para deixar instalar mais um pedaço de tempo, um lugar, um sorriso.
Ninguém sabia quem o tinha começado. Uma menina de caracóis sem nome, sorria-nos do alto da primeira página, com o olhar escorregado já na sépia amarelecida. Sorria-nos de longe, desse lugar do tempo que só nos pertence porque  existem recordações.

Na imagem: "Auto retrato em grupo" de José de Almada Negreiros 

segunda-feira, 8 de março de 2021

Para além de nós

 




Dobrei muito bem o lençol por alturas do queixo. De fora, apenas a minha razão e as tuas dúvidas. Abraçámos -nos como se a noite fosse eterna. Como se o aconchego que nos invadiu fosse capaz de nos fazer esquecer os demónios. Todos eles. Os que chegam de madrugada e sobem pela nespereira do jardim e os outros, os que vivem sempre dentro de nós.

O lençol, por alturas do queixo, lembra agora um mar enrolado ao corpo. Um mar alto de transpiração e sono. Um mar de alento, à espera de uma manhã que nem sequer sabemos se virá.
 Não fossem as minhas pernas sargaços e os teus olhos faróis de um qualquer navio e dizia te que podíamos partir. Agora, sem destino nenhum e com uma direcção: para além de nós.
Muito para além de nós…  


Imagem: "Night and Sleep" de Evelyn de Morgan 1878