sábado, 27 de abril de 2019

O olhar




Espanta-me que não consigas ver sequer o meu olhar…
Um olhar desmesuradamente manso e sem infinito. Como se o lugar se espremesse todo para dentro e arrasta-se com ele as ideias, as lembranças, as possibilidades e o rasto do horizonte.
Lá longe, muito para lá da iris que  certamente também não vislumbras,  acomodado está todo o meu silêncio.
Não vês o olhar, não vês a iris, nem sequer a mácula que transporto  imutável desde o dia em que nasci. 
Sei que por isso, nunca mais me amanhecerei e isso basta-me.
Sei  ainda que tu nunca irás entardecer e isso conforta-me.

sábado, 13 de abril de 2019

Quiosque amarelo



Desceu a par e passo até ao largo, inundado de luz e pespontado a quiosque amarelo.
Comprou o jornal dessa manha e embrulhou meticulosamente com ele, o olhar. Depois, dirigiu-se às margens que lhe sulcavam devagarinho o espanto. E só aí, se desaguou em foz.

segunda-feira, 8 de abril de 2019

Templo de Palavras



Encostei-me outra noite ao teu umbral a ver como separavas devagarinho as sílabas e as embalavas no colo. Depois, quando as sentias completamente reconfortadas, arrumava-las em caixinhas coloridas. Uma caixa para as sílabas tónicas, outra caixa para os monossílabos.  Duas caixas, de maior dimensão, para os polissílabos. Uma passa as mais leves e outra para as mais pesadas.
as tuas sílabas eram, na sua maioria, sílabas muito breves. Com um corpo pequeno e uma existência curta. Não queriam dizer, por si mesmas, quase nada. Limitavam-se por isso a existir, assim desalinhadas, tombadas, de braços abertos no teu colo enquanto tu, meticulosamente as separavas. (...)
Flor foi a sílaba que escolheste para me oferecer na primeira noite que passei encostado ao teu umbral (...)
Amanhã, quando madrugar, abrirás a porta.
Eu serei muito mais eu
E tu, tu serás uma vez mais o templo de palavras.

 Epilogo In "Templo de palavras"  Editorial Minerva Março de 2019