quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Lugar



Parto depressa. Apesar disso, o tempo escoa - se devagar por entre cada um dos meus passos.  Por causa do que vivi aqui, presumo. Ou então, por causa do que julguei ter vivido aqui.
Não olho para trás. A mala de mão, pesada, transporta apenas o meu olhar embaciado.
Não sei quando perdi o resto do meu sorriso, debruçada que vivi tanto tempo, na balaustrada de um infinito sem nenhum espaço.
Hoje, sem nada, nem sequer o meu sorriso, parto. Muito depressa. Sou apenas água que estremece e me afoga devagarinho. Muito devagarinho. Uma corrente de água e a respiração entrecortada pelo vento a anunciar outras paisagens. Caminharei inteira e lá, onde a travessia se fará passagem, construirei então o meu lugar.

Filipa Vera Jardim

Imagem: "The Human Condition" René Magritte 1933

 

domingo, 11 de outubro de 2020




O vento chegou e com ele os momentos todos que tínhamos atirado pela janela, estreita muito estreita, da nossa vida. Eram momentos doces, inoportunos. Momentos de silêncio e de tagarelice. Alguns,  eram mesmo momentos felizes. Acontecimentos sem nenhuma importância que se enrolaram uns aos outros e se deixaram, muito simplesmente, levar.
O vento embrulha-me quase tudo o que perdi, quase tudo o que me esqueci, dizes-me baixo com medo de acordares alguma  inevitabilidade. E eu, eu apenas te seguro levemente pelos ombros e deixo escorregar uma lágrima de encontro à palma da tua mão porque percebeste finalmente que sem esses momentos, não há agora nenhum passado que tenha realmente valido a pena.

Imagem: "Wind from the sea" de Andrew Wyeth