Tinha exactamente três anos quando me apercebi que as sombras voavam. Galgavam as escadas da casa da minha avó, através da luz da clarabóia, sempre um passo à minha frente.
Comecei por as tentar agarrar, enormes, nas esquinas. Dobrada numa imensa e constante correria.
E foi assim, que Lisboa ficou pequena e me fugiu dos pés...
Da estrela à Madragoa. Do Rato às Avenidas Novas. Do Rossio ao Castelo...as imagens passavam céleres. Iguaizinhas aos slides do verão.
-Vou ali num instante a casa dos avós e já venho...
Lançava-me da estrela à Visconde de Valmor, num contra relógio, que precisava sempre de ser confirmado ao regresso...
- Vou outra vez pode ser?
E partia, mais depressa que a resposta.
Mais devagar. Mais devagar - esta miúda não sabe andar- os apelos inúteis da minha mãe, que já só tinham por eco o fundo da calçada vazia, deram lugar às voltas, aos saltos, ao deslizar das mãos nas paralelas. Esfoladas, apesar das estafas.
Foram anos infindáveis onde o sofrimento físico se misturava com a vontade férrea de voar. Muito para lá de todas as sombras...
E elas, cada vez mais exigentes, sempre coladas ao mais infímo dos movimentos.
Sombras que só cediam perante o sono, de um dia cheio, enroscado na frieza de mais uma cefaleia de tensão. De outra tendinite de esforço.
E os sais que não tinham tempo de ser repostos...e o peso que não subia...
O veredicto foi claro:
- Neste nível de competição o organismo ressente-se. Os custos são elevados...há que fazer escolhas.
A sombra a agigantar-se. A engolir-me logo ali, todas as lágrimas que eu ainda tinha . E a correr veloz à minha frente...
Até hoje.
Hoje, Lisboa, voltou a ser pequena outra vez.
(este texto é dedicado aquelas que foram durante anos e anos as minhas segundas casas: ACM; Lisboa Ginásio; Ginásio Clube Português e Sporting Clube de Portugal)
Que texto fantástico!
ResponderEliminarImagino como deve ter sido difícil deixar a sombra ir velozmente a sua frente.
A dor e o sabor de voar muito bem colocados.
Beijinho
Lucia
Foi muito difícil Lucia. Sobretudo desistir. Se bem que uma ginasta nunca desiste totalmente. Há coisas que ficam para a vida
ResponderEliminarBj e obrigada
muito bonito texto e sobretudo o tratamento de uma coisa sem graça como seja a ginástica...eheehh...uma chatice, mas necessária, num esvoaçar das sombras. Excelente:-)
ResponderEliminarVMM de Souza,
ResponderEliminarAqui tenho que discordar. A ginástica para mim foi muito mais do que uma coisa necessária e nunca uma chatice. Foi uma opção de voar sobre os limites.
Obrigada
Uma das coisas mais difíceis da vida é abrir mão de um sonho. Concordo! Mas, pior do que isso é nunca tê-lo vivido.
ResponderEliminarVivenciar e depois perder, alimenta o nosso espírito de uma delicadeza capaz de atravessar anos e fazer um texto como esse, onde a emoção e a sensibilidade dão o tom. Obrigada, pela partilha.
Tento que seja assim Julieta, mesmo que às vezes seja tão duro, ter que abdicar dos sonhos. Parece que estavam mesmo ali...
ResponderEliminarObrigada