Comprara exactamente 60 canetas.
Uma, para registar cada segundo de existência. Ao longo de todas as hora a que encostara os dias.
Canetas de tinta intermitente, veio a perceber depois. Fluídas no desejo, no futuro, no tempo de acontecer. Mas perras, em todos os pretéritos.
Não podia escrever que fora, que estivera, que um dia sonhara, que por causa disso perdera. Não podia dizer que abdicara, ou que se rendera...as vogais, por mais que tentasse, ficariam no fundo do passado. Dentro do tempo que não se escoa.
Uma memória balbuciada era tudo o que conseguiria, de cada uma das sessenta canetas, em cada um dos sessenta minutos de todas as horas da sua vida.Se posse futuro, mesmo que condicional, as frases sairiam fluídas. E a tinta, de intermitente, passaria de imediato a uma tinta presente, permanente.
Experimentou, no dia seguinte, um dia em que havia tudo por acontecer, comprar mais 60 canetas.
Procurou bem os rótulos e optou por um, que dizia:" tinta de secagem rápida e óptima resistência às intempéries".
Começou então, a medo, a descrever todos os projectos, que evolviam quase todos os minutos...as canetas célere no meio do papel.
Só começaram a ceder, mesmo essas, de óptima resistência a todas as intempéries, quando se recordou de repente, do que acontecera essa manhã...a porta abrira-se cedo...e ela partir(a). Já sem vogal. Não sab(ia) bem para onde e muito menos porqu (ê).
Ela partir(a) sem nenhuma vogal . Quase não se lembrar(a) dess (e) fact(o) quando comprar(a) as canet(as)Partir(a) sem raz(ão) algum(a).
Só partir. Como quem vai.
Talvez se ela um dia voltasse, ele conseguisse então escrever. Com uma tinta qualquer...
O amor resolve... Uma boa "Waterman" também...;) Nada como a tinta virtual...Intemporal (Pelo menos enquanto houver electricidade!).
ResponderEliminarNão há nada virtual. nem tinta, nem pessoas, nem sentimentos. Sobretudo sentimentos.
Eliminarpara mim é tudo real.
Bj
A Filipa ainda acredita.Isso é bom. Eu já não. Palavra. Vou vivendo, al dia, ou como disse um poeta de Palencia, ali pelas bandas de Valladolid, " ... a pasar la vida si sentirla y sentir la muerte sin pasarla ... "
ResponderEliminare fica o Bécquer ...
Fingiendo realidades
con sombra vana,
delante del Deseo
va la Esperanza.
Y sus mentiras,
como el fénix, renacen
de sus cenizas
um beijo amigo
Fernando,
EliminarA esperança renascerá sempre.
Ás vezes passamos partes da vida sem a sentir...mas a morte não me apetece mesmo passá-la.
Bj
pois o difícil, a arte, deve ser mesmo sentir la muerte sin pasarla...
Eliminare não me ligue muito, isto tem dias...
Muito interessante. Como se uma caneta, aquela, pudesse refazer a memória, a vida...
ResponderEliminarAs caneta podem refazer quase tudo. menos as memórias, que não querem ser lembradas.
EliminarObrigada
com tanto talento podia tentar um outro estilo de escrita...
ResponderEliminarPoder podia. Até vários. E depois? Não seria isso uma imitação? Tenho algum receio de "estilos de escrita" que não sejam os próprios... mas já agora, fico com curiosidade de saber o que tem em mente...
EliminarAdorei, está lindo!Parabéns!*
ResponderEliminarNem nas canetas se pode confiar... até as melhores nos falham.
ResponderEliminarÉ verdade Luísa. Já nem nas canetas.
EliminarMais do que ter muitas canetas,importante mesmo é ter uma que seja capaz de acompanhar escrevendo, para que seja real,os bons momentos mas também os outros aqueles que apetecia esquecer.Só assim a vida faz sentido porque uns derivam dos outros justificando-os.Quando isso acontecer é vê-la veloz, quase que voando dos dedos contente porque se cumpriu a si mesma.
ResponderEliminarAqui foi preciso uma para cada minuto de vida, de cada uma das horas.E, mesmo assim, não se conseguiu fixar a memória...por vezes basta uma, é certo :)
EliminarObrigada Concha.
Bj
penso que poderia narrar uma história, real ou fictícia, com uma linguagem directa.
ResponderEliminarAqui no blogue, faço pequenos apontamentos. Todos eles são princípios, meios, ou finais de histórias.A serem, ou poderem vir a ser desenvolvidos.
EliminarEu percebo o que quer dizer com linguagem mais directa. Uma coisa mais imediata e mais simples.
Lastimo, mas não sei escrever assim. Até porque a escrita não pede muita licença para acontecer.
Mas há muita gente a escrever assim.
Um bocadinho mal comparando...era como chegar ao pé do Lobo Antunes e dizer-lhe: olhe ,era mesmo isto, mas em simples s.f.f. Ele escreveria sem dúvida. Mas não seria ele.
Avançamos a passos largos para isso, para uma escrita suavezinha, fácil e muito comercial. Não estou nessa "onda". Talvez por isso me vão encontrando aqui por este cantinho.
Em todo o caso obrigada pela dica.
talvez...
ResponderEliminare sim, até podia ser a lápis.
beijinhos Filipa
As canetas são uma imagem só Luís. Com a vantagem de deixarem, ou não a tinta escorregar. Por isso as canetas.
EliminarMas claro que tudo poderia ser a lápis, daqueles que por vezes aparecem carregados e de outras vezes se somem com o tempo...
Bj Luís (e vá dando conta das sessões de poesia)
"Um bocadinho mal comparando...era como chegar ao pé do Lobo Antunes e dizer-lhe: olhe ,era mesmo isto, mas em simples s.f.f. Ele escreveria sem dúvida. Mas não seria ele."
ResponderEliminar(risos e aplausos)
"Avançamos a passos largos para isso, para uma escrita suavezinha, fácil e muito comercial. Não estou nessa "onda".
(anuir sincero e um parabéns)
Pego num desses tomos em forma de romance que me responda em palavras simples e sento-me nas dunas empurrado em direcções aleatórias por ventos de borrasca latente, páginas voam e passam sem eu me aventurar por suas linhas para chegar ao fim com a mesma conclusão de quem o leu em escritórios moldados com ar de erudição, de quem analisou cada variante e interpretou cada predicado.
(agora já não aplaudo, abstenho-me em suave introspecção)
Cumprimentos.
Eu sei pouco sobre esses tomos em forma de romance James Dillon. Assim que os abro, vejo muitas palavras e nenhum silêncio. Parecem-me livros sem respiração.
EliminarEntão assim, nas Dunas, melhor mesmo soltar-lhes as páginas, antes que se afoguem...e pior do que isso o arrastem, como bóia de salvação, de livros asmáticos.
Quanto às variantes e aos predicados, confesso que em gramática, não vou muito além de substantivos de emoções.
Cumprimentos
Este seu texto fez-me lembrar sabe quem?
ResponderEliminarMia Couto.
Sobretudo em Pensatempos.
Gosto muito!!
Bjs
Obrigada Pedro.
EliminarEntre o Mia Couto e eu, há pelo menos cinco continentes e outros tantos oceanos,carregados de palavras (secas e molhadas)
Ele é um escritor e eu uma escrevinhadora.
Obrigada,
bjs
Tinha por hábito ler as crónicas diárias do MEC, no Público.
ResponderEliminarMas, agora, que não auguro nada de bom para a Maria João, é raro o dia que uma lágrima não escorre durante a leitura desse imenso amor dele por ela.
E o teu final > Talvez se ela um dia voltasse, ele conseguisse então escrever. Com uma tinta qualquer... < remeteu-me directamente para Colares.
Um beijo. Gostei muito, FILIPA !
João Menéres,
EliminarHá sobreviventes. Temos que pensar que há sempre sobreviventes. Porque há mesmo sobreviventes. Sou testemunha disso.
E não pode haver lágrimas, para haver sobreviventes. Tem que haver muita força e muita fé.
E pode haver Colares outra vez para a Maria João...só se perde no fim!
Beijo e obrigada
(A Liga Portuguesa Contra o Cancro (LPCC) organiza no dia 28 de Maio, segunda-feira, na Fundação Calouste Gulbenkian, uma “Conferência Sobre Sobreviventes de Cancro”)
Acabei de ler este último comentário e peço que me perdoem a intromissão, mas pensei que talvez possa ajudar se disser que tenho uma amiga que teve um cancro na mama há dois anos e perante um quadro de doença em vários membros da família,está viva,a trabalhar imenso e principalmente feliz.Eu tive um melanoma há 7 anos e ainda cá estou.Tanto para a minha amiga, como para mim tudo mudou nas nossas vidas e não foi para pior.(se a Filipa achar que não deve publicar este comentário, da minha parte tem liberdade total para o fazer).
ResponderEliminarConcha,
ResponderEliminarÉ por testemunhos como o seu, que vale sempre a pena lutar e acreditar. Obrigada.
Xclnt! Assim mesmo, sem vogais...
ResponderEliminarObrigada CBO.
ResponderEliminarAs vogais emperraram...
Com todas as letras do alfabeto da emoção eu tiro o meu chapéu e te saúdo. Bjs
ResponderEliminarObrigada, por utilizar tão bem o alfabeto das emoções e nos presentear com um texto primoroso.Bjs
ResponderEliminarObrigada Julieta.
EliminarBj :)
Em suma; as sessenta canetas, eram da marca "Futura"?!
ResponderEliminar;)
Belíssimo texto George, como sempre... segundo-a-segundo.
;)
As sessenta canetas,Bartolomeu eram da marca "futura" si, Muito bem visto :)
Eliminarsão textos um bocadinho sofridos sim.
Gostei imenso desta m(e)t(á)f(o)r(a)... Das canetas e das vOgAIs...
ResponderEliminarObrigada Isa.
EliminarBj
Tão bonito este texto. Parabéns, Filipa!
ResponderEliminarA caneta é um objecto especialíssimo, acompanha-nos nas horas mais importantes. Estas tinham uma função para cada minuto, e que função!
Gostei muito, como sempre a originalidade é um facto.
Beijinho. :)
Obrigada Ana.
EliminarAs canetas acompanham também a minha memória, agora que se escreve com teclados...mas ainda gosto de um bom aparo e de um tinteiro :)