segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Minha mãe pássaro

Mãe, acordei com os gritos dos pássaros. Passam velozes pela minha janela, em bandos estridentes, a piarem sobre tudo e mais alguma coisa que lhes passa nas suas cabeças redondas e profundamente brancas. São insignificantes, eu sei, como insignificante é quase tudo o que vai acontecendo no desenrolar dos dias. 
Dentro de mim, o panorama é interior. Tão interior como pode ser a interioridade de objectos e ausências, de muitos objectos e demasiadas ausências. Debruço-me na janela e grito aos pássaros que passam. Rodam levemente a cabeça e decidem então, pousar devagarinho, um a um na corda do meu estendal. Se visses mãe, este equilíbrio balouçante de pássaros e vento na corda do meu estendal, nunca mais o esquecerias. 
Os pássaros não falam, toda a gente sabe disso. Na maior parte dos casos piam. Outras vezes, grasnam ou cantam devagarinho, as cabeças brancas postas de lado como quem contempla e escuta. Se me puser a pensar, quase percebo que os pássaros não são bem deste mundo. Não são deste mundo de terra e chão, do caminhar forçado, os joelhos já trôpegos, do levantar, do ir quase sempre, do ficar de vez em quando, do deitar à espera que a leveza chegue e ela nunca mais chega porque a leveza tem um tempo próprio, muito curto, algures perto do nosso inicio. Depois, crescemos e ela vai-se. Se volta, em algum momento da vida, é apenas isso mesmo, um momento, mas nunca mais essa frescura que nos eleva no espaço, nos faz sorrir a quem passa, nos envolve e nos presenteia cada dia envolto em brisa e espanto.

 Será a morte uma leveza quando ela chegar mãe ? Quero-te ao meu lado minha mãe para me amaciares o caminho. Recordar é isso, é achar-me aconchegada nos teus braços para me amaciares sempre o caminho. Qualquer que ele seja e para onde quer que eu vá. Mesmo que acabe ali, de repente, numa curva e não parta para mais longe do que o recôndito espaço, escondido, albergue da minha alma. Lá estão eles, vês? São os pássaros, balouçantes, a viverem no espaço todo. O ar circula-lhes por dentro e por fora e traz com ele e para eles, imagens velozes. Sempre e cada vez mais velozes. Estão ali, os pássaros e, sabem-me a mim, presa deste lado onde há apenas chão e terra e ausência e um silêncio que não é de pássaro mas de gente. Rodam as suas cabeças brancas com ângulos de rotação muito superiores aos meus e, vêm-me toda. Vêm por dentro de mim e da espera que aqui jaz. 
Gostava de um dia ser pássaro, contigo minha mãe, feitas as duas de penas e leveza e vontade de voar. Planaríamos no horizonte primeiro que tudo. Depois, sobre os campos e as flores, sobre o mar a galope, pelo mundo redondo e por cima das coisas. De todas as coisas que se habitam de vento. Nesse dia, saberíamos abrir os braços e traçar o incessante e o infindável, percorre-los um a um, embalá-los um a um e dizer-lhes que assim, num destino de pássaro é muito mais fácil ser- se feliz.

 Fecho agora a janela. Os pássaros partiram. Resta o meu tempo e o teu tempo. Todo o tempo aqui preso, feito de terra, inconformado. O chão chora inconformado de ter nascido preso a um mesmo lugar. E eu com ele, toda membros e estacas. E tu minha mãe a saíres dele, devagarinho como quem não quer a coisa...Tornas-te a cada dia que passa menos chão minha mãe. Os teus braços caem-te ao longo do corpo e não me respondem. Os teus dedos outrora rápidos no meu cabelo adormecem agora, vazios.


Imagem: "Air" de Giuseppe Arcimboldo