quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Latitude

 


" Sentara-se naquele lugar havia tanto tempo.
ninguém lhe tinha dito que havia um momento próprio para sair, um tempo correto de abandonar. 
O lugar parecera-lhe imenso, com espaço para o resto de quase tudo o que já sonhara, o resto de quase tudo o que ainda não vivera. 
sentado, as mãos caídas no colo, o olhar absorto, o mundo algures e esse único lugar...Quem sabe, uma pequena conquista ao incomensurável. 
Não passar por ali ninguém. nem o velho, nem as coisas, nem nenhum outro espeço, nem sequer a sombra de um silêncio ou de um murmúrio. 
As mãos caídas, o olhar vazio.
Sentara-se por uma única razão: decidira-se a permanecer."

Filipa Vera Jardim. "Latitude". Fafe, editora Labirinto, 20023

Espero que gostem do meu novo livro. 

terça-feira, 22 de agosto de 2023

Kilimar Artes & letras

 

A Kilimar é uma publicação de Quelimane, Moçambique. 
É sempre com muito gosto que publico na minha terra de nascimento Tete, Moçambique. Nessa África de Lonjura e distância, de calor e vastidão que foi o meu berço. 
Nesta 7º publicação da Kilimar celebra-se a palavra e a arte e também os oitenta anos da cidade de Quelimane.
Agradeço  o convite  e desejo à Kilimar  muito sucesso. 


segunda-feira, 17 de abril de 2023

Album de fotografias





A única ordem possível nas páginas era a de chegada à vida.
Um a um, cada qual na sua vez, tomávamos o lugar que nos calhava no enorme álbum de fotografias da sala de jantar.
Era à mesa que se desfolhavam as páginas, se acrescentava os que acabavam de chegar e com pena, se passavam as as mãos, carinhosamente, pelos rostos dos que tinham acabado de partir. O álbum era pois uma espécie de repositório de uma parte das nossas almas, precisamente aquela parte que só existe depois de devidamente assinalada, devidamente partilhada e com assento no lugar de uma história.
Por cada um que chegava e por cada outro que partia, o álbum abria-se para deixar instalar mais um pedaço de tempo.
Ninguém sabia quem o tinha começado. Uma menina de caracóis, sem nome, sorria-nos do alto da primeira página, com o olhar escorregado já na sépia amarelecida. Sorria-nos de longe, desse lugar do tempo que só nos pertence porque existem recordações.
Quem fora? O que fizera? De que forma durante a sua vida poderia alguma vez ter imaginado que tantos anos depois a contemplaríamos no seu vestido emudecido, nos seus sapatos de laços desfeitos, no seu sorriso estático. Não obstante, ali estava ela. Da mesma forma que, prevejo agora, ali estarei eu dentro de umas dezenas de anos.

Não fossem as recordações e nada disto faria sentido. Nem o velho álbum de fotografias, nem o sorriso a sépia amarelecida da menina no alto da primeira página nem a minha vontade de ali permanecer.
Recordar é efectivamente a única possibilidade de se viver, prolongando assim os acontecimentos para lá da vivência, os instantes suficientes a os reinventarmos uma e outra e outra vez.


Filipa Vera Jardim 

Imagem: " Las meninas" 1656 de Diego Velásquez

domingo, 29 de janeiro de 2023

A viagem

 


Sentei-me direita, de frente para o que brevemente seria passado, a rodar num entusiasmo frenético, num balanço, num balanço e, sem querer, adormeci.

O sonho não o vivi sequer. Ou não me lembro, não sei.

Quando acordei, encarei de frente o mesmíssimo cenário, ou um cenário parecido e foi então que percebi. A viagem estava ali, à minha frente, Feita de passos dados, de sorrisos sorridos, de gentes que nunca voltam.

Sentada ao meu lado, aconchegada entre o vidro da última janela, na derradeira carruagem, viajava de branco. Perguntei-lhe o nome, disse-me chamar-se memória. De apelido: travessia.

A fotografia é do Ni Francisco