A única ordem possível nas páginas era a de chegada à vida.
Um a um, cada qual na sua vez, tomávamos o lugar que nos calhava no enorme álbum de fotografias da sala de jantar.
Era à mesa que se desfolhavam as páginas, se acrescentava os que acabavam de chegar e com pena, se passavam as as mãos, carinhosamente, pelos rostos dos que tinham acabado de partir. O álbum era pois uma espécie de repositório de uma parte das nossas almas, precisamente aquela parte que só existe depois de devidamente assinalada, devidamente partilhada e com assento no lugar de uma história.
Por cada um que chegava e por cada outro que partia, o álbum abria-se para deixar instalar mais um pedaço de tempo.
Ninguém sabia quem o tinha começado. Uma menina de caracóis, sem nome, sorria-nos do alto da primeira página, com o olhar escorregado já na sépia amarelecida. Sorria-nos de longe, desse lugar do tempo que só nos pertence porque existem recordações.
Quem fora? O que fizera? De que forma durante a sua vida poderia alguma vez ter imaginado que tantos anos depois a contemplaríamos no seu vestido emudecido, nos seus sapatos de laços desfeitos, no seu sorriso estático. Não obstante, ali estava ela. Da mesma forma que, prevejo agora, ali estarei eu dentro de umas dezenas de anos.Não fossem as recordações e nada disto faria sentido. Nem o velho álbum de fotografias, nem o sorriso a sépia amarelecida da menina no alto da primeira página nem a minha vontade de ali permanecer.
Recordar é efectivamente a única possibilidade de se viver, prolongando assim os acontecimentos para lá da vivência, os instantes suficientes a os reinventarmos uma e outra e outra vez.
Filipa Vera Jardim
Imagem: " Las meninas" 1656 de Diego Velásquez
As fotos e os objetos usados, tocados foram deixados, não só como testemunho de uma existência partilhada, mas também, para serem a chave que abre as gavetas da memória, o interruptor que liga a máquina que reproduz e projeta as imagens e os sons guardados na memória.
ResponderEliminarE isso Bartolomeu. Obrigada
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