quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Eremus et Civitas Lucum Antologia Poética 1984 - 2024 de Victor Oliveira Mateus

 


Terminei hoje de ler esta antologia poética do Victor Oliveira Mateus. Terminei-a para a recomeçar a ler. É o único caminho que me resta, face a uma poesia que sendo de alma, de interioridade, de corpo, é simultaneamente uma respiração da natureza e da vida na sua imensidão. Uma procura de tudo aquilo que nos completa e tanto nos custa a alcançar. Uma interpelação exigente e rigorosa ao leitor, que se faz percurso de partilha na coragem, nos afectos e na memória.
Ao reler cada poema encontra-se quase tudo o que ainda não se viu, quase tudo o que ainda não se sentiu, quase tudo o que ainda não se tinha pensado.
Nós, os outros a solidão e o silêncio. Nós os outros, o afecto, a coragem a solidão e o silêncio. Nós os outros, o afecto, a coragem, a angústia, a solidão, o silêncio e o impulso para se ir mais longe, mais fundo, procurar na água alguma explicação sobre esse ” lugar que habito” , percurso sempre sofrido de quem não desiste nunca de procurar e de se procurar.
É assim, esta poesia, num galope ou num sussurro, palco adentro, um esforço crescente e cadenciado, onde o tempo assume uma dimensão fluída. Ora a Grécia antiga, ora a infância, ora Pedro e Inês num amor de braços abertos a um Tejo pejado de novas rotinas, quiçá de rostos tristes, eu sei lá mas tento adivinhar se são assim tão tristes. São rostos e, mesmo não estando plasmados na sua tristeza, creio que existem e são tão tristes. E, acredito que o poeta os viu e lhes deixou o espaço suficiente para os podermos adivinhar assim. Creio tanto que eles existem que volto lá uma e outra vez. E de uma vez os rostos são tristes e da outra são uma negritude e na terceira já nem sequer são necessários, só percebo isso agora, porque importante era afinal, “Um cargueiro no centro da paisagem ( que) ignora as outras embarcações, que, ufanas, cumprem a sua glória de unir margens” (pag 97). Era isto que o poeta queria dizer e eu tardava, presa a rostos inexistentes, mas tristes, a compreender.

É assim a poesia do Victor Oliveira Mateus, uma poesia que partilha conosco vários cenários e se impulsiona e nos impulsiona para um palco amplo em cada palavra e também nos seus silêncios, depois e antes de cada palavra e até no meio delas e dos anseios que transportam.

o lugar daquilo que não está escrito, apenas porque nem sequer precisa de estar, é tão ou mais poesia porque é pausa, silêncio, lugar do poeta que estende a mão ao leitor. E, ri-se o poeta, eu acredito, na descoberta tardia do leitor, nos passos refeitos muitas vezes, no virar de página.

 É também assim que o poeta se procura e se reencontra para se perder de novo. Se desvenda e se recobre para se desvendar de novo. “Ah, o cais é sobretudo os meus olhos virados para a foz” ( pág.98),
É preciso questionar a cada passo. Pensar a cada passo. Os movimentos entrelaçam-se nas raízes, na contemporaneidade e assumem-se ora solidão, ora partilha, ora ambos entrelaçados.
Se leram já Victor Oliveira Mateus, vão redescobri-lo nesta antologia. Aqui, é um outro olhar onde nada é deixado ao acaso. Nem o lugar das palavras, nem a cadência dos poemas, nem sequer o espaço de os deixar acontecer.

Se não conhecem ainda a poesia de Victor Oliveira Mateus, preparem-se para uma surpresa demorada, com encruzilhadas que nos fazem reler muitas vezes.
A uns e outros uma excelente viagem,  neste que é sem nenhuma sombra de dúvida, um dos grandes livros de poesia das últimas décadas.
Pela minha parte, volto já ao início.

Filipa Vera Jardim
Lisboa 22 de Agosto de 2024

 

 


domingo, 2 de junho de 2024

As cores da Liberdade

 


Foi apresentado no dia 30 de Maio na feira do Livro de Lisboa no pavilhão da Gradiva. 
A Coletânea foi organizada pela Profª Fernanda Mota Alves e contou com a apresentação da Profª Dora Nunes Gago que fez uma  pequena resenha dos textos de todos os participantes. 
Agradeço ao PEN Clube Português e à Gradiva a possibilidade de aqui constar o meu contributo. 

(...) Sou livre a contemplar. Sou perfeitamente livre a imaginar que a minha contemplação me transforma as extremidades quase mortas do meu corpo em raízes. Sou, depois  disso, livre a desejar que amanhã o dia me acorde com outra gota de orvalho a descer gloriosamente pelo caule desta flor ao encontro da terra.
Não é menor esta terra envasada num parapeito de um oitavo andar de um hospital, nem menos autêntica nem menos densa nem menos ampla. Terra é sempre terra, chão feminino que nos abraça desde o dia em que aqui chegamos, que nos ampara os passos, nos absorve as lágrimas e nos amortalha, também. 
(...) Sou livre! Absolutamente livre! Nunca fui tão livre na minha vida. 
A minha liberdade é plena e do tamanho da eternidade do orvalho e das flores. 


quinta-feira, 23 de maio de 2024

Lubnan - Líbano

 

Lubnan - Libano

O tempo escoava-se  nos passos apressados,
A agarrar as esquinas,
Num cais negro de ausência e medo.
Água que se transbordava e nos transbordava.
Sons e sombras, sons e sombras, alternados com paisagens decoradas,
Feitas de quarteirões traçados a esquadro,
Milimétricos e vazios.
Sem rastos,
Sem rostos,
Sem nenhuma cor.

Dois barcos e o medo a transpirar-nos de mansinho.
Tempo recontado ao segundo.
Ao largo, uma sombra apenas, pairava.
Pontos presos no infinito e traçados oblíquos galgavam à frente dos nossos passos
Num cenário de urgência e água.

Éramos apenas cinco e podíamos ser outros tantos
Os passos abafados na urgência a percorrerem céleres o caminho
Certos de que na volta não nos lembraríamos de nada
Nem de ninguém

O cais desviou-nos para sempre o olhar,
E o mergulho esgotou-nos
No horizonte que nos resgatou.
Viemos. Chegámos.
Lá longe ficou a cidade
Para sempre adormecida. 

F.V.J

Imagem: "O Emir do Líbano"  De Jozsef Borsos







domingo, 31 de março de 2024

Do Professor Ernesto Rodrigues sobre o meu livro "Latitude"

 


«Infinito» é a primeira e última palavra de Latitude, um surpreendente longo poema em prosa de Filipa Vera Jardim (2024), se não quisermos cindir o conjunto de 77 composições, no que este número significa de interioridade e determinação. Dada a longitude por outrem, importa buscar novas coordenadas, fazer o nosso próprio caminho. A deambulação e travessia do texto inaugural vão desaguar no eu como um rio (“Sou um rio que atravessa o tempo.”), opondo ontem e hoje, numa movência íntima que anseia pela foz, ou infinito, «Lá longe».

Como se consegue este ritmo ondulado, a espaços salmodeado? Com vocábulos, frases e estruturas reiterativas, incluindo anafóricas, e, se há ecos em versos distantes, ou um revisão de passos em dois com o mesmo título (“Estavam todos mortos, porém a luz”), é fundamental a relação de contiguidade. Esta sintaxe humaniza-nos, embora um tu emergente seja o desafio para o eu que se revolve e constrói diuturnamente, entre falta, duração e visões.

A frequência de «nem sequer» denuncia e acrescenta ao vazio. É já positivo, entretanto, algo que não se espera na economia da informação: os diminutivos de ternura, os superlativos absolutos sintéticos e, mais presentes, como fechando essa busca de infinito, os advérbios de modo, que confirmam e ecoam durabilidade.

Se os registos de linguagem variam – da geometria (raio, circunferência, recta, paralelas, etc.) ao familiar («como quem não quer a coisa», «de uma assentada», «ao pé-coxinho»…) – e se, para marcar uma negatividade alheia, se reenvia à tradição sinestésica («cor pálida do teu silêncio», e, mais, «sombra do um silêncio ou de um murmúrio», «sombra do teu desgosto») ou ao achado de «sem dó nem si» –, mais instigadora é a tranformação de um olhar em visões, quer na primeira, quer na terceira pessoa, rompendo microconto, mini-crónica, «vírgulas espalhadas por cima da cama», uma “Mulher-garça”, qual súbito quadro surrealista belga, o onirismo de Chagall. Estas realidades casam com as nossas «esquinas desgrenhadas», com os diários navios dos mortos também aqui flutuando.

Há uma anatomia do poema em prosa que raros conseguem desenhar. Entre os luso-vivos, não vejo quem se execute com a felicidade de Filipa Vera Jardim.
Ernesto Rodrigues

Agradeço a leitura atenta do Professor Ernesto Rodrigues  do meu livro "Latitude"
F.VJ

 


sábado, 30 de março de 2024

O Bicho


 (...) Não sabendo nós nunca onde ele está, é como se estivesse em toda a parte.
O espaço, ocupa-o ele, sobretudo, de cada vez que temos medo, de cada vez que nos encolhemos  e não saímos, não fazemos, não permitimos, não agimos na nossa plenitude de humanidade. 
O tempo é agora longo e vazio. O espaço imenso que o bicho ocupa confinou-nos a um absurdo onde nada mais existe porque nada mais é importante.
De todas as nossas rotinas, agora suspensas, ficam apenas aquelas que não nos definem e não nos diferenciam. Somos seres vivos, alimentamo-nos, dormimos e somos apenas isso, diz-nos o bicho todos os dias, do alto da sua omnipresença encapotada. 

In"Literatura e Cultura em tempos de pandemia" UCCLA , 2021

Quadro: "Cisnes reflectindo elefantes"  Salvador Dali, 1937

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Espera por mim, mãe


 

Espera por mim, mãe

 

Espera por mim na beira da estrada, mãe. Ou num degrau do alpendre branco com vista para os vivos, os quase vivos e os que existem apenas porque o céu ainda não os quis.

Espera por mim, mãe.

Os meus passos doravante serão mais curtos, menos firmes, menos rápidos,

Mas nem por isso menos eficazes nestas lonjuras pintalgadas de mágoa.

Há lugares que se encurtam pela ausência e pelo silêncio.

Entre prados feitos da firmeza dos abraços que permanecem,

Apesar dos invernos que parece que nunca mais se desmancham.

Há estrelas perenes e braços de árvores caídos no meu caminho,

Uma suavidade que me empurra,

Feita da brisa amansada nos passos que conheço de cor.

Espera por mim, mãe.

Voltarei no tempo das cigarras ao teu colo.

E depois mãe, faremos dos nossos caminhos, em uníssono, um riso, uma onda e um alento.

 


Fotografia: Ni Francisco