domingo, 31 de março de 2024

Do Professor Ernesto Rodrigues sobre o meu livro "Latitude"

 


«Infinito» é a primeira e última palavra de Latitude, um surpreendente longo poema em prosa de Filipa Vera Jardim (2024), se não quisermos cindir o conjunto de 77 composições, no que este número significa de interioridade e determinação. Dada a longitude por outrem, importa buscar novas coordenadas, fazer o nosso próprio caminho. A deambulação e travessia do texto inaugural vão desaguar no eu como um rio (“Sou um rio que atravessa o tempo.”), opondo ontem e hoje, numa movência íntima que anseia pela foz, ou infinito, «Lá longe».

Como se consegue este ritmo ondulado, a espaços salmodeado? Com vocábulos, frases e estruturas reiterativas, incluindo anafóricas, e, se há ecos em versos distantes, ou um revisão de passos em dois com o mesmo título (“Estavam todos mortos, porém a luz”), é fundamental a relação de contiguidade. Esta sintaxe humaniza-nos, embora um tu emergente seja o desafio para o eu que se revolve e constrói diuturnamente, entre falta, duração e visões.

A frequência de «nem sequer» denuncia e acrescenta ao vazio. É já positivo, entretanto, algo que não se espera na economia da informação: os diminutivos de ternura, os superlativos absolutos sintéticos e, mais presentes, como fechando essa busca de infinito, os advérbios de modo, que confirmam e ecoam durabilidade.

Se os registos de linguagem variam – da geometria (raio, circunferência, recta, paralelas, etc.) ao familiar («como quem não quer a coisa», «de uma assentada», «ao pé-coxinho»…) – e se, para marcar uma negatividade alheia, se reenvia à tradição sinestésica («cor pálida do teu silêncio», e, mais, «sombra do um silêncio ou de um murmúrio», «sombra do teu desgosto») ou ao achado de «sem dó nem si» –, mais instigadora é a tranformação de um olhar em visões, quer na primeira, quer na terceira pessoa, rompendo microconto, mini-crónica, «vírgulas espalhadas por cima da cama», uma “Mulher-garça”, qual súbito quadro surrealista belga, o onirismo de Chagall. Estas realidades casam com as nossas «esquinas desgrenhadas», com os diários navios dos mortos também aqui flutuando.

Há uma anatomia do poema em prosa que raros conseguem desenhar. Entre os luso-vivos, não vejo quem se execute com a felicidade de Filipa Vera Jardim.
Ernesto Rodrigues

Agradeço a leitura atenta do Professor Ernesto Rodrigues  do meu livro "Latitude"
F.VJ

 


sábado, 30 de março de 2024

O Bicho


 (...) Não sabendo nós nunca onde ele está, é como se estivesse em toda a parte.
O espaço, ocupa-o ele, sobretudo, de cada vez que temos medo, de cada vez que nos encolhemos  e não saímos, não fazemos, não permitimos, não agimos na nossa plenitude de humanidade. 
O tempo é agora longo e vazio. O espaço imenso que o bicho ocupa confinou-nos a um absurdo onde nada mais existe porque nada mais é importante.
De todas as nossas rotinas, agora suspensas, ficam apenas aquelas que não nos definem e não nos diferenciam. Somos seres vivos, alimentamo-nos, dormimos e somos apenas isso, diz-nos o bicho todos os dias, do alto da sua omnipresença encapotada. 

In"Literatura e Cultura em tempos de pandemia" UCCLA , 2021

Quadro: "Cisnes reflectindo elefantes"  Salvador Dali, 1937

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Espera por mim, mãe


 

Espera por mim, mãe

 

Espera por mim na beira da estrada, mãe. Ou num degrau do alpendre branco com vista para os vivos, os quase vivos e os que existem apenas porque o céu ainda não os quis.

Espera por mim, mãe.

Os meus passos doravante serão mais curtos, menos firmes, menos rápidos,

Mas nem por isso menos eficazes nestas lonjuras pintalgadas de mágoa.

Há lugares que se encurtam pela ausência e pelo silêncio.

Entre prados feitos da firmeza dos abraços que permanecem,

Apesar dos invernos que parece que nunca mais se desmancham.

Há estrelas perenes e braços de árvores caídos no meu caminho,

Uma suavidade que me empurra,

Feita da brisa amansada nos passos que conheço de cor.

Espera por mim, mãe.

Voltarei no tempo das cigarras ao teu colo.

E depois mãe, faremos dos nossos caminhos, em uníssono, um riso, uma onda e um alento.

 


Fotografia: Ni Francisco