«Infinito» é a primeira e última palavra de Latitude, um surpreendente longo poema em prosa de Filipa Vera Jardim (2024), se não quisermos cindir o conjunto de 77 composições, no que este número significa de interioridade e determinação. Dada a longitude por outrem, importa buscar novas coordenadas, fazer o nosso próprio caminho. A deambulação e travessia do texto inaugural vão desaguar no eu como um rio (“Sou um rio que atravessa o tempo.”), opondo ontem e hoje, numa movência íntima que anseia pela foz, ou infinito, «Lá longe».
Como se consegue este ritmo ondulado, a espaços salmodeado? Com vocábulos, frases e estruturas reiterativas, incluindo anafóricas, e, se há ecos em versos distantes, ou um revisão de passos em dois com o mesmo título (“Estavam todos mortos, porém a luz”), é fundamental a relação de contiguidade. Esta sintaxe humaniza-nos, embora um tu emergente seja o desafio para o eu que se revolve e constrói diuturnamente, entre falta, duração e visões.
A frequência de «nem sequer» denuncia e acrescenta ao vazio. É já positivo, entretanto, algo que não se espera na economia da informação: os diminutivos de ternura, os superlativos absolutos sintéticos e, mais presentes, como fechando essa busca de infinito, os advérbios de modo, que confirmam e ecoam durabilidade.
Se os registos de linguagem variam – da geometria (raio, circunferência, recta, paralelas, etc.) ao familiar («como quem não quer a coisa», «de uma assentada», «ao pé-coxinho»…) – e se, para marcar uma negatividade alheia, se reenvia à tradição sinestésica («cor pálida do teu silêncio», e, mais, «sombra do um silêncio ou de um murmúrio», «sombra do teu desgosto») ou ao achado de «sem dó nem si» –, mais instigadora é a tranformação de um olhar em visões, quer na primeira, quer na terceira pessoa, rompendo microconto, mini-crónica, «vírgulas espalhadas por cima da cama», uma “Mulher-garça”, qual súbito quadro surrealista belga, o onirismo de Chagall. Estas realidades casam com as nossas «esquinas desgrenhadas», com os diários navios dos mortos também aqui flutuando.
Há uma anatomia do poema em prosa que raros conseguem desenhar. Entre os luso-vivos, não vejo quem se execute com a felicidade de Filipa Vera Jardim.
Ernesto Rodrigues
Agradeço a leitura atenta do Professor Ernesto Rodrigues do meu livro "Latitude"
F.VJ
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