Há Pássaros que levantam voo sempre que perdemos a esperança. Ou será que o fazem porque não sabemos onde deixar o destino?
Fotografia: Ni Francisco
Pedem-me que alcance o horizonte por cima de todos os cinco mares.Como se o horizonte não estivesse no fundo rotativo do infinito.Como se os cinco mares não se dessem as mãos, em toda a sua lonjura e, a água, não soubesse voar...
Filipa Vera Jardim
Imagem: Fotografia de Ni Francisco
Asas tem um peso
certo, uma inclinação correcta.
Debruçam- se por cima do vento à procura do horizonte.
Asas são feitas da matéria da alma misturada com a dos sonhos e moldada na bigorna da
vontade.
Asas são assim, uma espécie de espelho, complemento da existência de
todos aqueles que nasceram para voar.
Imagem:" The Threatened Swan "Jan Asselijn 1650
Antes de ontem o tempo era diferente. Sabia a terra, a sal da terra e tinha gente. Antes de ontem, as horas passavam céleres pela curva perfeita do relógio, sem olharem para trás. Os cabelos das horas voavam a cada minuto, os sorrisos das horas sucediam-se numa cadência ritmada...Antes de ontem.
Ontem suspendeu-se tudo. Um repente de suspensão dos passos, das necessidades, da urgência de ir e de voltar, do pensamento, ate
é. E o mundo, o mundo reduziu se instantaneamente ao tamanho de um espaço vazio e de um silêncio. Quem olhasse o relógio, ontem, encontrá lo-ia pasmado. Como se nada se passasse, nada acontecesse. E isso foi ontem.
Depois disso não houve mais tempo, mais espaço, mais gente e eu fiquei aqui. (...)
in " Os dias da Peste" Organização de Teresa Martins Marques e Rosa Maria Fina , PEN Clube Português, Gradiva, Julho de 2021
Imagem: "O triunfo da Morte " Pieter Bruegel
Era de piso assimétrico o terreiro grande da selva.
Por dentro, o espaço cingia-se a um orvalho matizado de negritude entre-cruzado
no lajedo irregular. Ninguém percorria o lugar. Como se a quietude os
mantivesse suspensos da sua própria respiração. Quietos, calados, absortos, sentados,
encostados a essa paragem.
Uma pequena louva- a- deus pousou brevemente nos olhos que se deslizavam por ali,
de uma mulher. Contemplar passou a ser então a sua única tarefa, feita em
batimentos leves e ondulados de duas asas semitransparente.
Em volta, os que ficavam, nem sequer se
aperceberam. Como se nada tivesse acontecido que valesse a pena. E afinal, tratava
se de uma eventualidade única na selva: o bater de asas de um louva- a -deus nos
olhos de uma mulher.
Nunca, nenhum pássaro se tinha aventurado sequer naquelas paragens. Uma selva
de cimentos e aço, de negritude e lajedo não era lugar onde uma ave pousasse.
A selva não tinha constância nenhuma. Hoje podia amanhecer negra e amanhã sem
cor. Raras vezes o amarelo se passeou por ali e de azul não havia um único
traço. Apesar disso, as asas semitransparente do louva- a- deus conseguiram, no
aquoso da íris dos olhos da mulher, pincelar uma esperança. Uma pequena e
minúscula esperança.
A mulher chorou então uma espécie de rio
que correu por ali abaixo e lavou. Lavou os passos quietos dos que permaneciam,
sentados, absortos e sem reparar. Lavou as lajes negras da selva e revelou-lhes
a brancura original. Lavou os traços ténues da imaginação que jazia colada ao chão e, elevou-a ao azul a espreitar no ar.
Imagem: "El hombre controlador del universo" Diego Rivera 1934