sábado, 10 de março de 2012

Rostos de fachadas, por limpar

Não lhe era fácil, passar o dia a lavar fachadas.
O extremo cuidado na limpeza  dos rostos, de toda a vizinhança, sem nenhuma excepção.
Trabalho meticuloso que envolvia perícia. Sobretudo na ombreira das existências.
Eram quatro ou cinco quarteirões. Como poderiam ser seis ou sete. Ou doze... ou toda uma freguesia.
Tinha como única referência o sol.  Relojoeiro seguro, no compasso da remoção das manchas, tantas vezes  imperceptíveis ao comum dos mortais. Por opção de mortalidade, seguramente.
O final do dia apanhava-o absorto, a contemplar  os passos, adivinhados, dos habitantes desses lugares, imaculados.
Em silêncio, despejava lentamente o balde cheio, de água suja.
Subia os quatro degraus, meios esboroados de tempo,. Um de ontem. Um de hoje. Um de sempre e um de quase nunca... que o conduziam às seis ou  sete paredes, albergue dos próprios silêncios e, dos sons, que vinham vindo... e esperava, de olhos postos no tecto, da única casa sem janela e, nenhuma fachada, desse lugar.

Por volta da meia noite, voltaria a sair.
O balde de água suja, substituído por um  de tinta negra.
Nas mãos o  compasso. A delinear , com toda a precisão, por meio de choros abafados, de palavras intercaladas e, de emoções... o quase sempre,  infinito de mundo, que haveria, amanhã mesmo, para limpar...


( a fotografia é do Rui Andrade- Viseu à noite )

14 comentários:

  1. Parabéns por este texto e por todos que tem colocado. São preciosidades. Por isso mesmo, tenho no lado lateral esquerdo do meu blogue um sêlo para si "Prémio Dardos".
    Beijinho!

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  2. Uma tarefa incessante que o (nos) esvaziava sempre que era preciso recomeçar e recomeçar uma vez mais de forma perfeitamente anónima.

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  3. Ana,

    Muito obrigada. Um beijinho para si.
    (não faço ideia como é que colo o sêlo aqui...vou ter que descobrir...sou uma "croma " da informática de marca maior!:)

    mfc,

    Surpreendente leitura, de um texto que se quer tão aberto quanto possível.
    A tarefa incessante do recomeçar...
    Obrigada

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  4. George Sand,
    É muito fácil. Clica em design e procura mini-aplicação, clica de novo e escolhe colocar imagem do computador; depois é só importar e já está.
    Beijinho!:)

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  5. verdadeiro suplicio - com a poluição cada vez mais densa. e corrosiva...

    imaginação e talento. teus.

    beijo

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  6. Ana,
    Vou experimentar mas até tremo...sou uma naba completa a informática. Cada vez que faço alguma coisa estrago duas ou três. Obrigada e beijinho.

    heretico,

    Poluição e fachadas...Obrigada
    Bj

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  7. Não é fácil a limpeza

    mas tentemos sempre
    Um dia o sol brilhará

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  8. Mar Arável,

    Há sempre limpezas...de fachadas.
    E ausências delas...
    E todas as leituras possiveis.
    Obrigada :)

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  9. Belíssimo texto que me fez recordar um poema de Tolentino.

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  10. CBO,

    Mas que elogio..um poema do Tolentino.
    Obrigada

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  11. Lavar fachadas é difícil, cansativo, há sempre trabalho à espera... Mas mais difícil é lavar o que está por detrás da fachada...

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  12. Isa Lisboa,

    Lavar fachadas ainda se consegue...o que está por dentro, na maior parte das vezes. Ou, quase sempre, é impossível. Mas muita gente vive bem, só de fachadas...:)

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    1. Será que vive bem só de fachadas... ou apenas parece que vive bem...? ;)

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    2. Nem tudo o que parece é...cabe a cada um perceber onde está a sua fachada, se é que a tem...E a forma correta de a limpar. Ou não...
      Obrigada

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