quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Alfaiataria de Palavras




Por toda a noite, alinhavavas palavras, com o tecido bem esticado nos joelhos.
Primeiro os pespontos das sílabas, sob as entretelas. De uma, ou outra recordação.
Só depois o rumo certo no corte. Capaz de desenfrear frases completas, aos ombros, retalhados, das memórias.
Alinhavavas os braços, devagar, pelo tempo que passava...
Pernas ainda esquecidas, dos passos. Mas com o comprimento correcto, de todos os sonhos.
De tempos a tempos paravas. Ias até à única janela da alfaiataria e fumavas um cigarro. Suspenso de uma linha,  muitas vezes ténue é certo, mas riscada firmemente a giz, logo no início da noite.
Era o tempo de fantasiar mais uma casa. Desejar o alinhavo perfeito, a escorregar, em terreno ameno de fazenda...
As horas passavam, assim,  na quietude. As únicas horas em que na alfaiataria de palavras se trabalhava.
O tecido a amarrotar-se  vezes sem conta. À passagem de um cometa, ou na vertigem da cadência de uma estrela.  Era preciso engomá-lo agora e depois. Uma e outra vez...
E o olhar, expectante, da intensidade do último botão...
Antes que a manhã te tocasse à campainha, já o casaco sairia. Vestido de si. Com letras compostas. Pela porta larga da alfaiaria...

12 comentários:

  1. Lendo assim parece fácil. Dá vontade de nos tornarmos alfaiates...Mas para escrever assim, tão bem, não chega agulha e linha, a Filipa tem o melhor pano!

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  2. Um belíssimo jogo de palavras alinhavado com precisão e sensibilidade... Parabéns!

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  3. Cartas de Julieta,

    Obrigada. Gosto que tenha gostado. Já fui espreitar o seu cantinho. Ficou aí ao lado.

    Luís,

    O pano é o da sensibilidade que vem com asas e, que nos faz fazer voar o pensamento de encontro às palavras. O mesmo que o teu. Sendo que a tua escrita é de Mestre, a minha de aprendiz.

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  4. Filipa,

    Concordo com o Luís.
    Que belo tecido bordas com as palavras.
    Lindo!
    Beijinhos

    Lucia

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  5. Obrigada Lucia.
    Vou bordando palavras, mas daí a ter um bordado...ainda tenho muito que calcorrear :)
    Bj

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  6. que bem escrito está:-) uma beleza de fluidez.

    Temos costureira!

    será como as costureirinhas antigas de Lisboa, com as suas aventuras por entre as ruelas de um bairro típico.

    Bela alfaiataria!

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  7. Rita Vasconcellos,

    Obrigada e um beijinho para ti. Gosto muito do Walter Ego e fiquei contente com as novvidades.

    Vicente MM Souza,

    Obrigada.
    Não, é mesmo uma alfaiataria. E de mestre alfaiate. Nada de custureirices copiadas dos figurinos em vão de escada.

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  8. Texto lindíssimo, Cara Filipa. Vi Amor picotado de suave erotismo. Afinal, só numa boa malha cada um consegue ver o que quer.
    Parabéns!

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  9. Vai-se custurando...
    Entre um debruado de espanto,
    Um pesponto de encanto,
    um alinhavo de riso,
    Alguma tristeza vivida.
    E no recortar de uma manga,
    Ou botão mais controverso,
    Se ache os pespontos do verso,
    que nos preencham a vida.

    Obrigada Paulo de Abreu e Lima

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  10. belíssimo...vc está muito bacana como poeta, vai em frente moça.

    estou aqui no calçadão sentado ao lado da estátua de Drummond de Andrade e estou falando com ele sobre vc.

    ele me disse que vc devia publicar seus trabalhos poéticos.

    palavra de poeta!

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  11. Obrigada Vicente MM de Souza. Abraço no grande Drummond! Elogio de Drummond, mesmo estátua, é pra levar em conta. Um dia quem sabe, deixo de rasgar e começo a publicar. Obrigada

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