domingo, 18 de dezembro de 2011

Carta à minha memória ( I )



O repto foi o de escrever cartas. Com remetente e destinatário. Normalmente as cartas distam espaços. Nestas, a separá-las, estará o tempo.
Pelo que o carteiro...se o houver, não poderá ser, senão, a própria vida.

I
Sapatos de Verniz


 Minha Memória,

Não sei o que aconteceu. Tinha-os guardado no armário, entre o bibe, de todos os dias e, a saia que trouxe da festa...agora desapareceram.
Lembras-te certamente. São os pretos, de verniz.  Não aqueles de sempre, herdados da prima, com a presilha meio rebentada que já decoraram o caminho da escola. Mas, os outros, de botão de festa.  Quase não sabem nada estes sapatos. Acho que nem nunca saíram de casa, a não ser no Natal.
Foram  comprados na "Ratinho", precisamente,  para o Natal. A avó escolheu-os e tentou calçar-mos várias vezes, enquanto os meus pés balouçavam no carrossel que rodava, justamente a meio da loja.
Eu sei que te lembras. Estavas lá, junto à porta, não fosse a avó se esquecer da cor. Ou, os meus pés se lembrarem de crescer, justamente naquele instante.
E agora que não os encontro...
Ainda vou procurar melhor numa cómoda cá de casa, onde se guardam coisas insignificantes, coisas importantes, chapéus e se calhar sapatos de verniz. Pode ser que lá estejam. Pelo menos um...mais não seja um.
O outro,  lembro-me agora,  tinha aquela mania  de  se esconder debaixo da cama...
(olha, fui lá e não está).

Sabes memória, já são muitos anos.  Eu e tu, nesta coisa de perguntar o que não se acha, o que não se lembra.
Eu sei que vives  de recordações. Acho que é exactamente por isso que te escrevo.
Tenho saudades sabes.
Tenho muitas saudades tuas.
Vê se te recordas dos sapatos. De um, ou dos dois, se puderes.
E não te esqueças que nunca preciso de cartas tuas. Basta-me que fiques por aí e que te vás lembrando de mim.
Agora vou selar a carta...de tempo e deita-la num qualquer marco da vida. Vai chegar num instantinho...ou não. Mas isso não é nada importante. O importante é que chegue....a tempo das tuas recordações.
Saudades, mil.

Filipa

Este texto foi escrito originalmente, para o Blogue Cartas aos molhos (palavras aos folhos)




11 comentários:

  1. Posso ser um receptor da mensagem?
    Alguém que partilha a memória do belo na infância, das histórias da sandália inglesa, das meias de renda com laço de seda e dos bibes dos laços a fazer totós!
    Bela viagem fia com esta carta que enviou!
    Beijinhos mil,
    Luísa Vilaça

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  2. Luisa,

    São cartas que atravessam o tempo. Também o da partilha.
    Claro que pode ser um recptor. Todos podemos, desde que tenhamos memória :)
    Beijinho

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  3. Que bela missiva leva esta carta...linda.

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  4. Já ninguém escreve cartas.
    Um hábito que se perdeu.

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  5. Pedro Coimbra,

    De vez em quando e, a título excepcional, ainda escrevo cartas.
    Não há nada como o papel escrito, que se desdobra. Já para não falar da proximidade da tinta, da letra, do tempo que uma carta se faz esperar...
    Obrigada

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  6. Esta carta, trouxe-me à memória as que escrevia, quando passava uma parte das férias de verão, em casa da avó materna, pertinho da Serra de Estrela.
    Era, é, uma aldeia grandinha, com muitos habitantes,agora quase deserta, a maioria analfabetos, gente rural que nunca teve oportunidade de aprender a ler e me pediam para lhes ler e escrever as cartas que eram a única forma de dar e receber notícias dos entes queridos que tinham emigrado para outras terras, em busca de uma vida melhor, ou de um sonho.
    Mas como era muito maroto e achava que o texto que me ditavam, não tinha o menor interesse para quem iria recebe-lo, decidia transforma-lo por minha conta e risco. A grande prova chegava no final da escrita, quando a, ou o ditador me pedia para reler o que me tinha ditado... aí a minha memória tinha de trabalhar a 1000%, por forma a repetir aquilo que me tinham ditado, mas que nãotinha escrito.
    Quando quem ditava tinha melhor memória que eu e me apanhava em direcção diferente àquela que tinha imposto, eu então servia-me de uma "esperteza" e atalhava logo com um "mas assim fica melhor". Acontecia ainda por vezes, ser quem ditava, mais teimoso que eu, insistindo que queri como tinha ditado. Nessa altura, servia-me do plano "B", passava um traço sobre o que não estava bem e reescrevia a minha frase, por cima do traço. Ao reler, fingia que lia o que me tinham ditado.
    ;)))

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  7. E afinal os sapatos já apareceram?!
    Um óptimo texto de memórias...e não só.

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  8. mfc,

    os sapatinhos só na volta do correio da memória. Num dia de sonhos.
    Obrigada

    Bartolomeu,

    Essas eram as verdadeiras "cartas da memória". Aquelas que se faziam e refaziam. Aliás como todas as cartas.
    Por isso as guardamos sempre.
    É que as cartas guardam-se, ao contrário de e-mails, de sms, que acabam por fugir no tempo. Mas as cartas ficam. E manuseiam-se.
    Obrigada pela história

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  9. Belíssimos sapatos!

    Pilar

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