terça-feira, 30 de agosto de 2011

Louro

Acorda cedo.
Muito cedo.
Demasiado cedo.
Completamente cedo.
Ele sabe... por isso, começa por uns "apitos" suaves, a saudar os poucos carros que passam. Não valem o esforço.
É tempo de meneio de cabeça e alisar de penas.
Por volta das seis entram as primeiras ambulâncias  no viaduto.
Os menos avisados, pensariam facilmente, que todos os dias, a minha rua, acorda no meio de uma catástrofe...mas não. O louro, há muito que lhes "topou" as sirenes e as andanças. Pelo que responde estridente, do seu segundo andar. Numa proporção de duas para sete, sempre com o louro em vantagem.
Só acalma, cerca das oito e tal, com os olás dos vizinhos. Correspondidos prontamente.

O problema é quando os residentes partem e, a rua se enche de outras gentes. Gentes que não conhecem o louro e não sabem dos olás e dos bons dias....o louro, embalado que está, nos olás, não compreende. Sente-se ignorado...Enerva-se.
Avança então,  para os apitos e as sirenes...a que vai  somando choques e derrapagens. Toda uma "paisagem sonora", que o louro descobriu do seu parapeito...mas os transeuntes raramente olham acima da cabeça.
Às onze, mais coisa menos coisa e, farto de não ter atenção, começa o ´"número" tão aguardado.
O louro, num desespero de fúria, atira-se do varandim.
Espera-o o precipício e uma morte estatelada no passeio, que o louro anuncia entre berros de fazer chorar as pedras da calçadas e um bater de asas em agonia...
Os passantes precipitam-se. Montam-se estratégias...um casaco para amparar a queda.  Avisos para a janela . Alguém que toque à campainha...
O louro, esvoaça, cada vez com menos forças e o bico a escorregar, da minuscula goteira da varanda. Preso por um "limite infímo,  de bico,  à vida,  fica então de lado. A única forma de controlar a campainha, pelo canto do olho.
No derradeiro instante... já com uma assistência razoável, sobe. Ligeirinho. Por uma minúscula corrente que tem presa à pata  e não se vê da rua. Cumprimenta, faz uns meneios e acalma...só até à próxima tentativa de suicídio.
Às vezes tem azar e, mesmo com "a coisa" bem controlada, alguém consegue chegar primeiro à campainha...a dona recolhe o louro, entre risos e aplausos, que fica de castigo, às cabeçadas na janela. E, certamente, a apurar a "técnica" do lado de dentro


 O desenho é um original  gentilmente cedido pelo autor e ilustrador  José Abrantes 



15 comentários:

  1. É na ingenuidade que está a beleza... e na mestria das palavras e na profundidade desse olhar clínico que tudo despe...

    Texto saboroso! Gosto da simplicidade da narrativa, sem pretensiosismos. Uma história bem contada e com forte componente visual...

    Parabéns também ao José Abrantes pelo magnífico desenho

    Luis Bento

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  2. :))

    Digo, como no primeiro comentário:

    Magnífico!!!

    Dramática a estratégia do Louro e o texto da dona(presumo)transmite-nos tudo isto de uma forma apuradíssima.

    Gostei.

    Olinda

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  3. Obrigada Luís Bento.
    A história é mesmo visual e auditiva: o bichinho vive no prédio em frente.
    O José Abrantes é de facto dono de um grande talento e equivalente carreira como autor e ilustrador,de livros infantis. Cedeu-me este, gentilmente.


    Olinda Melo,
    Infelizmente não é meu o papapagaio. Se bem que é um dos meus animais preferidos.
    Ainda bem que gostou.
    Obrigada

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  4. Gostei muito do texto. O Louro não sabe medir as consequências, que impressão o lançamento para o vazio.
    Tive um papagaio em miúda era do meu pai. É um bicharoco simpático.
    O desenho é fantástico acompanha bem o texto!

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  5. Ana,

    Os louros são engraçados. Repetem tudo mas sem terem a noção de nada. Tenho pena de não poder ter um. Deve ter sido engraçado ter tido um:)
    Obrigada

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  6. Oh mae isto está genial! E o susto que apanhamos quando o bicho se atira... :P

    Gostei muito <3

    Inês V J

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  7. Hoje não se atirou...deve ter lido om post :)

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  8. Rindo aqui do louro.
    Menino danado.
    Adoro esses bichinhos.
    beijo

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  9. Olá Luz.

    Esse Louro existe mesmo. Inflizmente não é meu...mas está de chuva e o Louro nos dias de chuva não aparece. Vem-lhe ao de cima a "tropicaidade" :)

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