quarta-feira, 6 de junho de 2012

Uma janela, da altura do meu assombro






 A casa era ampla. Divisões serenas que se entre-cruzavam num emaranhado de portas.
Abertas por coisa nenhuma que não fossem os seus próprios passos.
Breves e objectivos, esses passos.
De um lado, o lugar de ficar. Do outro, o de permanecer...
Não havia nenhuma exiguidade. Nem sequer de noite, quando o ritual se fazia deambular pelos corredores imensos.
Foi assim até, exactamente três terços da sua vida.
Os passos registados num contador de passos, que servia ao mesmo tempo de guardador de histórias. Pelo menos, daquelas que se movem.
2300 passos para a direita e o dia seria de ficar. Mais do que isso, e o dia, seria de permanecer.
Nunca gostou de esquinas desgrenhadas. Travavam-lhe o andar e possibilitavam-lhe um quase horizonte. Não muito largo, mas ainda assim, um horizonte...

Nesse dia em que completou três terços da sua existência, sentou-se na beira da cama e não conseguiu andar...os pés imóveis, no chão frio de pedra. O contador de passos: inerte.
Ainda teve tempo de chamar o seu único amigo:
-Corre Jorge. Vem depressa. Rasgar-me uma janela. Do peito, ao infinito.E, com a altura do meu assombro.



(Fotografia gentilmente cedida pelo autor: Rui Andrade)

23 comentários:

  1. Porque se fazem, nos dias que correm, janelas tão pequenas? Porque se interrogam perguntas simples, perante o traço das palavras belas? Seremos mãos a transcrever a osmose do olhar, trabalhos que se parecem, tanto, com prazer.

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  2. Porque se fazem, nos dias que correm, janelas tão pequenas? Porque se interrogam perguntas simples, perante o traço das palavras belas? Seremos mãos a transcrever a osmose do olhar, trabalhos que se parecem, tanto, com prazer.

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    1. Janelas pequenas para horizontes com medida certa. E cada vez mais acanhados.
      Obrigada pelo comentário.
      Volte sempre

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  3. Ah,como dói esse rasgar a janela do peito! Principalmente, quando os nossos passos ainda não concluíram a contagem do tempo e sobra-nos entusiasmo para habitar a casa dos sonhos e da esperança. Bjs

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    1. Doi muito, rasgar janelas no peito Julieta. Mas é o preço da liberdade.
      Obrigada.
      Bj

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  4. Filipa,continuo a acompanhar os seus belíssimos textos,embora não tão assiduamente como eles merecem e eu gostaria,por falta do tal tempo,que nos enreda.Aquilo e a forma como escreve,as metáforas imagens de imaginares, de des/encantos em que se "atira"para o texto",é um voo em que me voo,sempre que a leio.
    Como diria alguém,ligado a este md.das escritas,o seu texto"range"connosco,não se fica indiferente...Ele é a Diferênça,a tal witz que a Filipa É e nessa Witz...transporta-se para o texto.Não escreverei"parabéns"...prefiro dizer-lhe,como alguém do md.das escritas...os seus textos são Fantásticos,continue,FORÇA!E..gostaria muitíssimo de a conhecer pessoalmente!Que tal um encontro na F.de Letras de Lisboa?Aqui fica uma "ideia"!Isabel Serra

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    1. Obrigada pelas suas palavras Isabel.
      Tenho muito gosto.
      Combino consigo via Fb

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  5. Observar o horizonte através de uma janela rasgada, é quase voar.Há sempre ali ao nosso alcance um mundo que nos espera e é bem real, assim tenhamos a coragem de vencer medos instalados caminhando ao sabor dos ventos que ora sopram fortes, ora nos afagam.

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    1. A janela é o voo. E o voo tem imprevistos.
      Dentro de uma casa fechada não há imprevistos...
      Ainda bem que existe o medo.
      Bj Concha e obrigada

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  6. é no que dá não gostar de "esquinas desgrenhadas"...

    excelente.

    beijo

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    1. As esquinas desgrenhadas são sempre lugares de escolha.
      Obrigada herético.
      Bj

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  7. Existem duas formas de ler os seus textos. Pausada e demoradamente, como quem saboreia chocolate verdadeiro; de um só trago, como quem sorve uma ostra cheia de mar. Desta vez fui pelo chocolate...

    :)

    Bjos

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    1. Obrigada Paulo.
      É um estimulo para continuar...a escrita como sabe, é muitas vezes sofrida.
      Também gosto muito da sua. E das fotografias: fantásticas.
      Bj

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  8. O que eu me pergunto é quando a casa tem sabores diferentes, milhares de sabores, todos os diferentes sabores imagináveis, mas nenhum deles sabe como casa minha, aí nessa desenvoltura os passos ressoam da mesma forma?, ou a única saída é encontrar uma outra gruta onde os passos ecoem?, será a janela de reposteiro em danças exóticas a única saída?.

    Belo texto uma vez mais,


    cumprimentos,
    JD

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    1. Se não há sabores de casa minha...talvez os passos ecoem por labirintos de incessante procura.

      Não creio que sejam os reposteiros em dança exótica a única saída. Nem sequer a melhor saída. Muito menos as grutas onde os passos ecoam. Unicamente, ao redor de Si.

      Muito obrigada Dillon,

      Cumprimentos

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  9. A diferença subtil, mas determinante, entre o estar e o permanecer num texto escrito com a argúcia e saber de quem sabe distinguir as coisas importantes da vida.
    Beijinhos,

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    1. As coisas importantes da vida, em referência etiquetada, mas ainda não alcançada.
      Bj e obrigada

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  10. Uma janela do tamanho do universo e para lá dele.
    Georges Sand a sua escrita está cada vez mais sublime.

    Beijinho e bom dia de Portugal, do nosso Camões e das Comunidades Portuguesas.

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    1. Obrigada Ana.
      Uma boa semana para si..já que é outro dia.
      Beijinho

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  11. Só hoje descobri o teu blog. Conhecemo-nos sim, e vi-te uma vez só. Num jantar do V.J.
    Um beijinho do falcão (que tinha outro nome)

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